segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tradutore, traditore

A propósito da velha questão da tradução de textos, designadamente daqueles que são originários da área da anglofonia, muitas vezes, não chegando, no âmbito em questão, a haver exactamente erro, verificam-se, ainda assim, circunstâncias em que, mais uma profunda e grave imprecisão do que, volto a dizer, propriamente um erro deturpam significativamente o conteúdo da mensagem original. Quem tem por profissão lidar com a língua inglesa (para ensiná-la, desde logo, como é o meu caso) conhece perfeitamente uma 'família' de termos designados em jargão genericamente por "false friends", que são palavras ou mesmo expressões que, FORMALMENTE muito semelhantes a outras portuguesas, delas se afastam todavia muito pelos respectivos significados. Palavras e expressões como "eventually" (que significa, na verdade, "mais tarde" ou "posteriormente", "ulteriormente"), "presently" ("a dada altura", "futuramente" ou mesmo "depois") e por aí fora. Ora, acontece que, além dos que referi, um termo há "amigo" de dar igualmente lugar a maiores ou menores confusões - circunstância essa perfeitamente ilustrada, aliás, por um artigo do PÚBLICO (suplemento "Economia" de 24 de Abril de 2009) onde a tradução de "outrage" por "ultrage" cria, a dado passo, um equívoco perfeitamente reconhecível no texto de Steven Pearlstein "Deponhamos as armas". No texto em causa, se escreve, com efeito, a dado passo o seguinte: "Existe o perigo de este ULTRAJE chegar ao ponto de enfraquecer o esforço para conter a crise financeira". Antes, falou-se das medidas de recapitalização intensiva de uma série de instituições financeiras privadas (especificamente de duas) postas à beira da implosão ou da falência técnica totais em resultado de (na melhor e mais generosa das hipóteses...) sérios erros das respectivas gestões, assim como da mais do que discutível política remedial a que a medida anda, como refere o texto, associada e que envolve, como é evidente, uma drenagem mais ou menos consistente e substantiva de fundos públicos, usados para dar cobertura às disfunções geradas por aquela má gestão. Assim sendo, seria, também muito fácil ser-se levado a supor que o "ultraje" em causa residiria aí, no recurso a tão debatível recurso económico-financeiro/político (até porque, no texto, um pouco atrás se identifica este tipo preciso de prática política exactamente com um ultraje: "o verdadeiro ultraje", diz expressamente o texto, jogando com dois significados da palavra inglesa). Sucede, todavia, que no caso da expressão atrás citada e no ponto preciso referido, o termo "ultraje" é usado na acepção (também possível) de "indignação", "reacção escandalizada" ou "ofendida", "indignada" e refere-se, portanto, não à tal política de recapitalização persistente e substantiva dos privados com fundos públicos, como poderia supor-se, mas à reacção escandalizada de partes significativas da sociedade norte-americana e mundial relativamente a ela. Seria, de resto, essa a tradução a fazer na circunstância, ou seja: "existe o perigo de tal indignação chegar ao ponto de poder pôr em causa, enfraquecendo-o, o esforço para conter a crise financeira". Seria, repito, assim que eu traduziria, evitando a ambiguidade e (chamemos-lhe assim:) a declarada "fuga" deste ponto do texto para o previsível equívoco ou (literalmente...) completo quiproquó.

[Por outro lado], na edição do PÚBLICO de 10 de Março de 2009 há um cartoon (cuja legenda faz, de resto, nesse caso, parte do desenho) em que se diz textualmente: "And I thought YOU were lending to US". Ora, este é um caso paradigmático de uso ideal d(e uma d)as chamadas expressões "de realce", ou seja, no caso: "E eu que julgava que ERAM VOCÊS QUE nos estavam a emprestar a nós!...", em lugar do neutro e insípido "E eu pensei que nos emprestavam [quem?] a nós...!" (sic).

Carlos Machado Acabado

1 comentário:

Anónimo disse...

Comentários bons mas períodos excessivamente longos que levam a pontuação por vezes francamente errada. (Note-se que não usei uma única vírgula.) Será o autor descendente de um Janeiro Acabado que era autor de um livro da minha infância?