domingo, 4 de outubro de 2009

Em defesa da pátria

Se, como escreveu Pessoa, “a minha pátria é a língua portuguesa”, preservar a língua é lutar pela pátria


Ao contrário do que disse o PÚBLICO, o jornalista não “assaltou” Bush com os
sapatos


Mais do que um território, um conjunto de tradições ou um traço genético, a língua pode ser factor de identidade de uma comunidade nacional. Tome-se como se quiser, é isso que diz o aforismo de Pessoa: “A minha pátria é a língua portuguesa”. E o futuro da língua está hoje nas mãos dos media: é a imprensa e os meios electrónicos de comunicação quem define a forma como se fala e falará. Daí a responsabilidade dos jornalistas, que pode ser encarada de muitas maneiras mas que, para um jornal com o estatuto editorial do PÚBLICO, deveria ser no sentido de defender de modo coerente a correcção do português – o que implica apurados cuidados da parte de quem escreve.

O provedor já noutras crónicas tem sublinhado este aspecto, com o levantamento de inúmeros erros, muitos deles sistemáticos, que poderiam ser corrigidos com melhor formação ou até com um pouco mais de atenção ao que se verte para o teclado. A extinção progressiva - ditada pela contenção de custos – dos revisores de texto, a quem incumbia a tarefa de zelar pelo respeito das regras, só tem ajudado a tornar as coisas piores. Os alertas lançados nesta coluna destinam-se apenas a fazer ver como muitos erros podiam ser evitados se os jornalistas tivessem um pouco mais de sensibilidade para o problema.

Veja-se o caso dos estrangeirismos, cada vez mais frequentes, porque cada vez mais, abdicando da investigação própria (também devido à poupança), se traduz notícias e informações já publicadas noutras línguas (sobretudo em inglês e na internet). Entre muitos outros, eis dois exemplos detectados pelo leitor Rodrigo Valle Teixeira na edição de 5 de Setembro: na pág. 5, no artigo "Cientistas portugueses usam teoria dos jogos para redefinir o combate do cancro", “no segundo parágrafo, a frase ‘Se tudo corre bem, há um balanço entre esta dinâmica...’ deveria ser "Se tudo corre bem, há um equilíbrio entre esta dinâmica...’; na pág. 14, no artigo "Cinco pessoas morreram em protestos em Xianjiang", “onde se lê ‘com o tráfico cortado’ deveria ser ‘com o tráfego cortado’”. Comenta o leitor que no primeiro caso “parece uma tradução literal errada do inglês ‘balance’”, e quanto ao segundo: “Imagino que as autoridades chinesas tenham cortado o trânsito automóvel, e não o tráfico de substâncias ilegais”.

Ainda a propósito do Oriente, a legenda de uma foto da reportagem “Bebés roubados na China alimentam negócio das adopções”, na pág. 4 do P2 de 28 de Setembro, fala em “oficiais do planeamento familiar”, quando o texto, correctamente, menciona “funcionários do planeamento familiar”. Não consta, na verdade, que o planeamento familiar naquele país seja efectuado pelo exército, mas sim por funcionários (“officers” em inglês) governamentais.

Mais para ocidente, noticiou o PÚBLICO de 13 de Setembro, na pág. 15, sobre o jornalista iraquiano que atirara os sapatos a George Bush durante uma conferência de imprensa em Bagdade, que fora “condenado a três anos de cadeia por assalto a um chefe de Estado estrangeiro”. Tradução errada do inglês “assault”, que não significa “assalto” (a uma pessoa) mas sim “agressão”.

E a 10 do mesmo mês escrevia-se na pág. 14 sobre um “candidato incumbente”, expressão inexistente nos dicionários de português, em que não há equivalente para “incumbent” (do inglês, um eleito recandidato). Em contrapartida, existe uma palavra portuguesa para significar a expressão inglesa “statute of limitations”, que é “prescrição” (legal), mas o jornalista-tradutor que fez uma notícia para a pág. 13 dessa edição não deu por ela, escrevendo: “Não existe qualquer estatuto de limitação da responsabilidade pelos crimes de guerra”.

Ainda no domínio jurídico, escreveu Nuno Curado: “Não percebo como é que num ‘jornal de referência’ não há o cuidado para evitar a tradução directa de certos termos em inglês quando estes não correspondem na língua portuguesa. Utiliza-se no texto o termo ‘evidências’ como se se tratasse da palavra ‘provas’. Isso funciona em inglês em que ‘evidence’ realmente tem esse significado”. (O leitor, que escrevia em 24 de Setembro, não disse onde é que detectou a “evidência”, e o provedor também não a localizou, mas o erro é tão frequente nos media portugueses que, mesmo assim, vale a pena o alerta).

Quanto a Rui Miguel Neiva, reparou no seguinte: “Na edição de 15 de Setembro, no artigo da pág. 20 sobre a 'guerra dos pneus' entre os EUA e a China, diz-se no final da primeira coluna: ‘(...) e vêm responder às reivindicações das uniões de trabalhadores norte-americanos’. Esse 'união dos trabalhadores' não estará a referir-se a um (ou vários) sindicatos? É que a palavra 'union' em inglês significa não só 'união' mas também 'sindicato', o que, pelo contexto do texto, parece ser o caso". Tem o leitor razão.

Se bem que o inglês seja a influência dominante, não é a única. “Pasta”, palavra italiana para “massa”, ainda não entrou no léxico português, mas está permanentemente a ser usada. Exemplo: “Para Jamie Olivier, se o azeite for bom, a pasta for fresca....” (1 de Abril, pág. 4).

E depois há o recurso abusivo a palavras estrangeiras, outro tema também já abordado nesta coluna. É o caso que levou a leitora Isabel Barros Ferreira a reclamar: “No PÚBLICO de 14 de Setembro, pág. 20, sob o antetítulo ‘Consumo - Legislação traz mais garantias aos utilizadores dos centros de atendimento’, seguia-se um artigo cujo título era: ‘Nova lei dos call centers obriga as empresas a gravarem as chamadas por 90 dias’. Se há em português o termo ‘centro(s) de atendimento’, que me parece perfeitamente adequado para traduzir o inglês ‘call center(s)’, como aliás é utilizado no antetítulo, porquê insistir três vezes, no corpo do artigo, na expressão inglesa? Não haverá tradução adequada de termos como ‘backoffice’ e ‘contact center’, para não falar de ‘time-sharing’? É que estes termos aparecem também no mesmo artigo que, presumo, seja feito para ser lido maioritariamente por portugueses. E, não sendo o inglês língua oficial de Portugal, não entendo como obrigatório que todos tenham de saber traduzir aquelas palavras”.

Mudando de tema, o leitor Paulo Rato propôs-se intitular "Vamos salvar as preposições!" a sua carta ao provedor. Eis a razão: “Tenho notado que a temível quinta coluna que, infiltrada em tudo o que é meio de comunicação de massas, actua impunemente com o intuito de descaracterizar a língua portuguesa (...), se voltou agora para as preposições. (...). Num artigo publicado no P2 de 4 de Setembro, ‘Assassinaram o perfeito Brian?’, lê-se: ‘empreiteiro encarregue pela remodelação da mansão do guitarrista’. Que significa isto em português bem ‘preposicionado’: que uma entidade, de nome ‘remodelação’, encarregara o empreiteiro da mansão. De quê? Talvez de cuidar dela, de verificar que nada lhe acontecia, coisas assim… No PÚBLICO, semanas antes, escreveu-se: ‘Salvaguardando não conhecer ao detalhe a directiva’. Dou de barato o ‘detalhe’, galicismo de há muito acolhido pelos dicionários (...), mas refiro a sua origem porque, neste caso, é admissível que a preposição também tenha vindo de França, a acompanhar o ‘detalhe’, em embalagem de alumínio, com conteúdo ‘au meunier’. (...) Acrescento outra pérola, de 5 de Setembro. (...) É nos destaques de TV que está este anúncio de uma verdadeira revolução (ou será revulsão?) da História: Roubos de Arte Nazi (...) narra a história épica do roubo sistemático, da destruição deliberada e da sobrevivência milagrosa dos tesouros artísticos europeus do Terceiro Reich e da Segunda Guerra Mundial’. Será também da doença das preposições?”

Muito há a acrescentar, mas propõe-se apenas uma reflexão aos jornalistas. Num título na pág. 10 de 17 de Julho, “Social-democratas em silêncio sobre propostas de revisão constitucional para a Madeira”, o PÚBLICO aderiu à tendência tão em voga no meios audiovisuais de fazer o plural de “social-democrata” apenas no termo final, e não, como indicam a maior parte dos filólogos, nos dois (“sociais-democratas”). Como fará quem assim procede para o plural de “democrata-cristão”?

CAIXA:

A sexta coluna

Reclamou a leitora Graça Horta: ”Foi com espanto que no PÚBLICO de 28 de Outubro reparei que os resultados [das eleições legislativas] por distrito eram dados para as forças políticas com assento parlamentar e ainda para... o MEP! Ou se dava o resultado de todos os partidos concorrentes, ou, a escolher um pequeno partido, seria da lógica mais elementar publicar o do mais votado entre os pequenos, no caso o PCTP/MRPP. (...) O PÚBLICO está interessado em promover o MEP?”

Perante facto na verdade tão insólito, reconheceu o director adjunto Paulo Ferreira: “A crítica da leitora é certeira. Tratou-se de um erro, que não devia ter acontecido mas que tem explicação simples. Cerca de duas semanas antes, o PÚBLICO começou a preparar as bases informáticas e infográficas para a edição em causa. Tratava-se de criar automatismos para que, na noite eleitoral, a elaboração dos mapas, gráficos e tabelas de resultados pudesse ser feita com rapidez e adaptada aos espaços reservados em cada página. No caso das tabelas distritais, a indicação por mim dada ao departamento informático foi no sentido de prevenir a possibilidade de se acrescentar uma sexta coluna para além dos cinco partidos habitualmente mais votados. Porquê? Porque nas eleições europeias o MEP tinha sido o sexto partido mais votado em Lisboa e, se repetisse a mesma percentagem, teria eleito um deputado nesse distrito. Essa possibilidade tinha que ficar garantida previamente, sob pena de se verificarem atrasos no fecho da edição (...). Tal não se verificou (...). O erro foi, na noite das eleições e já de posse dos resultados, não se ter apagado de todas as tabelas a coluna referente ao MEP, que pareceu estranha, e com razões para isso, a muitos leitores”.

O provedor alvitraria solução diferente: como jornal de referência que aspira a ser, e porque nem todos os seus leitores são eleitores dos “cinco grandes”, o PÚBLICO deveria divulgar os resultados distritais de todos os partidos concorrentes (além dos votos brancos e nulos) e não segregar, na base da adivinhação, quem julga que não elege deputados.

Publicada em 4 de Outubro de 2009

1 comentário:

Miguel Pires disse...

Sobre este assunto do mau uso do português pelo PÚBLICO, gostava de chamar a atenção do jornal, via Provedor, para o constante e incorrecto uso de "música" quando se deve escrever "canção". Ainda hoje se pode ler no PÚBLICO "(...) foi a inspiração para uma das mais famosas músicas dos Beatles, Lucy in the sky with diamonds (...) A origem da música, segundo contou Julian (...)". Ora Lucy in the sky with diamonds não é uma "música". É uma canção. E neste caso nem sequer o hábito da tradução incorrecta do inglês pode servir de desculpa. Os ingleses usam neste contexto, como não poderia deixar de ser, song.

PS: Acho um pouco surpreendente que o PÚBLICO on-line no único local onde se refere ao Provedor e providencia a hiperligação para o seu weblog, indique que se trata ainda de Rui Araújo...

(http://static.publico.clix.pt/homepage/provedor/04.ruiAraujo/cv/default.asp)