domingo, 8 de março de 2009

Vamos à bola

Não há razão para o jornalismo desportivo ignorar os padrões de imparcialidade contido no Livro de Estilo

Não admira que os árbitros sejam os cidadãos mais insultados e enxovalhados deste país: os jornalistas dão uma ajuda

O título da notícia/reportagem de Bruno Prata no PUBLICO.PT não permitia ambiguidades: “Portistas seguram liderança com um penálti falso”. Isto a propósito do último FC Porto-Benfica (1-1), em 8 de Fevereiro. Mas o título do artigo na edição em papel, no dia seguinte, ainda carregava mais na tónica, ao considerar o tal penálti “falso como Judas”. Era aliás o que dizia o texto: que o árbitro “castigou o francês Yebda com um penálti falso como Judas (foi ludibriado por Lisandro) e que permitiu ao FC Porto empatar o clássico do Dragão”. E, mais à frente, para não restarem dúvidas: “Lisandro enganou o árbitro”. Ou ainda: “A grande penalidade de hoje foi mentirosa”.

“Todos os jogos de futebol trazem à discussão mais a emoção do que a razão”, considerou o leitor Tiago Silva Leal a propósito deste texto. “No entanto, a figura de jornalista, incluindo o da área desportiva, deve primar por padrões mínimos de ética e honestidade intelectual”. E dá a entender que, do seu ponto de vista, o trabalho de Bruno Prata não cumpre tais padrões: “Já sabemos que jornalistas 100% imparciais é impossível (afinal somos humanos), mas um bocadinho de isenção e bom senso ao escrever esta peça impunha-se”.

O leitor também não diz o que lhe desagrada, apenas sugere: “Todo o texto está ‘sujo’ com insinuações. Até pode estar lá a verdade, mas ao menos que tenha a capacidade e honestidade intelectual de colocar as coisas no seu devido lugar. (...) Com peças destas é que se vai construindo (neste caso destruindo) uma imagem forte de um jornal. Passo a passo, grão a grão”.

De qualquer modo, é a questão da “falsa” grande penalidade que imediatamente salta à vista, tanto mais que, ao fim de pouco tempo, o artigo de Bruno Prata no PUBLICO.PT acumulou mais de meio milhar de comentários, quase todos à volta da existência ou não da famigerada falta.

Ao provedor importa fazer aqui uma declaração de interesses: contou com a colaboração de Bruno Prata num projecto editorial em cinco volumes intitulado Crónica de Ouro do Futebol Português, que o Círculo de Leitores publicou no ano passado (passe a publicidade), pelo que mantém especiais laços de camaradagem com este jornalista. Mas julga-se em condições de poder ajuizar de forma distanciada sobre o caso, até porque já na altura abordou com ele estas ideias.

Solicitado pelo provedor a comentar a reclamação do leitor, Bruno Prata preferiu não o fazer. “Nem sequer percebo a que se refere o protesto”, considerou “Há centenas e centenas de comentários iguais a este e outros bem piores sempre que se escreve o comentário de um jogo, especialmente se as equipas forem (como foi o caso) o FC Porto e o Benfica. A paixão ‘futeboleira’ atrai sempre, nestes fóruns, uma data de gente disponível para insultar e questionar a imparcialidade e a isenção, seja de quem for. Hoje, numa boa parte dos comentários, até sou acusado de ser benfiquista e mais não sei o quê... Outros não aceitam que eu fale no penálti que foi marcado a favor do Benfica e não refira o possível penálti que pode ter ficado por marcar a favor do FC Porto (de facto, até falo, mas no espaço em que faço uma análise às individualidades e comento o trabalho do árbitro [apenas na edição em papel] – já pedi para o on-line passar a incluir todo o trabalho de quem está no estádio, para evitar estas situações)”.

“Quanto ao resto”, acrescenta ainda Bruno Prata, “acho que se devem fazer crónicas de jogos e não simples relatos das incidências dos jogos (que já foram vistas ao pormenor nas televisões). Sendo crónicas, entram mais no âmbito da opinião do que outra coisa”.

Com efeito, se o texto em causa fosse uma crónica ou um comentário, pareceria legítimo ao provedor que o autor opinasse sobre um penálti eventualmente mal assinalado. O problema é que se tratava de um artigo noticioso, que, segundo os “Princípios e normas de conduta profissional” contidos no Livro de Estilo do PÚBLICO, deve ser elaborado “da forma o mais imparcial possível”.

Poder-se-á alegar que a inexistência do penálti era matéria de facto e não de opinião. Mas desde logo a arbitragem é tudo menos uma ciência exacta: a avaliação de grande parte das jogadas no futebol reveste-se de carácter subjectivo, que aliás alimenta inúmeras discussões após os desafios e infindáveis tertúlias televisivas. Num trabalho jornalístico imparcial, seria forçoso fazer o contraditório acerca do lance polémico, isto é, registar opiniões diferentes (incluindo a de especialistas) sobre a questão do penálti, em vez de o jornalista, sem ouvir ninguém, atirar de forma categórica e irrefutável com a sua própria conclusão. É curioso, aliás, que o relatório do observador oficial do FC Porto-Benfica tenha concedido ao árbitro o “benefício da dúvida” neste caso (o que, não havendo razões para duvidar da isenção do autor, mostra não ser assim tão clara a jogada em causa), penalizando-o ao invés por não ter assinalado o tal suposto penálti contra a equipa lisboeta que Bruno Prata não referiu no PUBLICO.PT.

O que o provedor constata é que, em Portugal (e não especificamente no PÚBLICO), o jornalismo desportivo é um mundo à parte, onde os repórteres não se sentem na obrigação de seguir as regras da profissão. Os jornalistas têm o dever de respeitar o princípio constitucional da presunção da inocência de qualquer cidadão antes de condenado ou de acatar como válidas as sentenças dos magistrados judiciais. No futebol, porém, tudo é diferente: qualquer jornalista decide com toda a facilidade quem é faltoso ou não e arrasa de um penada o juiz de uma partida. Não admira que os árbitros sejam os cidadãos mais insultados e enxovalhados deste país: os jornalistas dão uma ajuda.

Um reparo a Bruno Prata foi ainda feito por outro leitor a propósito de outro texto seu, a sua crónica semanal “Ludopédio” de 27 de Fevereiro, intitulada “Liedson e os jogadores naturalizados”, onde escrevia: “No Mundial da Coreia/Japão, dez por cento dos 736 jogadores inscritos defenderam um país diferente ao do seu nascimento. Quatro anos depois, na Alemanha, o número aumentou para 64”.

Como reparou João Sousa André, isto não bate certo: “Não coloco em causa a afirmação de que, ‘no Mundial da Coreia/Japão, dez por cento dos 736 jogadores inscritos defenderam um país diferente ao do seu nascimento’. Mas já quando afirma que o número aumentou para 64 no Mundial seguinte, comete erros estranhíssimos. Ou 64 é uma percentagem ou um número absoluto. No primeiro caso, temos asneira. Não é necessário observar as composições das selecções do Mundial de Futebol de 2006 para saber que menos de 64% dos jogadores seriam naturalizados. No segundo caso, a asneira refere-se à afirmação ‘o número aumentou para 64’, uma vez que afirma antes que, em 2002, o valor era de 10% de 736, o que dá 73,6 ou, arredondando, 74 jogadores naturalizados, valor superior ao de 64 em 2006. É uma pena que erros destes passem em claro a alguém que é redactor principal de um jornal como o PÚBLICO”.

Crítica desta vez aceite por Bruno Prata, com um esclarecimento: “O leitor tem razão: os números estão incompletos e a frase saiu incorrecta. Só encontro uma explicação: o texto estava um pouco longo e tive de apará-lo rapidamente. Infelizmente, a frase acabou por ficar completamente truncada. Não justifica, obviamente, o que aconteceu, e só me resta pedir desculpa aos leitores. Antes dos ‘cortes’, a frase afirmava que, na Coreia/Japão (2002), tinham estado 34 jogadores a defender um país diferente ao do seu nascimento e que, em 2006, na Alemanha, tinham sido 67, um aumento de quase cem por cento. (...) No texto inicial, eu explicava ainda que (...), no Mundial de 2006 (e não quatro anos antes, como infelizmente acabou por sair), a prova teria sido disputada por quase dez por cento dos 736 jogadores inscritos”.

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Acontece...

O PÚBLICO assinalou na passada quinta-feira o seu 19º aniversário com um repositório de disparates saídos nas suas páginas. O provedor, que há muito recorta da imprensa portuguesa asneiras que alterem o sentido do que se pretendia escrever, gostaria de se juntar à festa, retirando da sua colecção outros exemplos dados à estampa por este jornal. Coisas do género “O homem tinha-se já partido a grande velocidade” (13/08/91); “É óbvio que Shari não ia arranjar um contrato assim do pé para a mãe” (07/04/95); “Jardim subiu ao palco e despediu-se, com ‘Pomba e circunstância’, do compositor Eduard Elgar” (25/07/05); ou o título “Benfica despede treinador [Ivic] pelo telefone” seguido por um artigo com as frases “Ivic despedido pela Rádio” e “A notícia foi-lhe [a Ivic] comunicada [...] pelo intercomunicador de sua casa” (29/10/92). Atente-se no crítico que despreza o que desconhece: “One Trick Pony e Hearts and Bones (...) são álbuns que conheço mal, e por isso não interessam muito” (17/07/91). Ou no repórter que preferiu a ausência de onde havia reportagem: “A estreia de Scapin de Molière, no dia 10, foi tempestuosa. O mistral soprou a 200 km/h. Os projectores não resistiram ao vendaval. Felizmente, o PÚBLICO não estava lá” (13/07/90). E nas vezes em que resuscitam os mortos: “Chegou mesmo a criticar o dirigismo da cultura que Lenine [falecido em 1924] implementou na União Soviética nos anos 30” (15/11/03); “Em 1990, o falecido rei, tentando mudar a má imagem que tinha neste domínio, decidiu criar o Conselho Consultivo para os Direitos Humanos e libertou 350 prisioneiros políticos” (23/12/04); “Ficou concluído em Setembro de 1910 e o rei D. Carlos [assassinado em 1908] só não o inaugurou porque a data marcada era 6 de Outubro” (13/08/06); “A PSP foi chamada ao local do crime, onde a vítima mortal entregou uma caçadeira, alegando recear pela sua vida” (13/03/05); “Este ano morreram já cerca de 50 mortos em cinco atentados suicidas” (29/04/07). Números e datas são um problema muito especial: “Criados até agora quase três postos de trabalho na Autoeuropa” (17/08/95); “Em 1917, H. L. Mencken publicou um artigo sobre a ‘história na banheira na América’, em que explicava que a primeira banheira chegou aos EUA em 1942” (15/05/03); “14,9 é a média de cigarros consumidos por dia na UE” (31/01/07). Repare-se nesta correcção: “Por lapso, na primeira página do PÚBLICO de ontem, o nome do dirigente da CGTP José Ernesto Cartaxo aparece como António Cartaxo. Pedimos desculpa a José António Cartaxo” (20/11/04). E, por último, nesta passagem: “Mantinha há mais de dois anos relações homossexuais com a vítima [...]. Há quem o ache ‘simpático e delicado’, mas também quem sempre o tenha visto como ‘um tipo esquisito, com um problema qualquer por trás’” (14/10/91). Sem comentários.

Publicada em 8 de Março de 2009

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