segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Uma entrevista que não é normal

Cavaco recorreu ao PÚBLICO para reforçar os seus argumentos num conflito político. Deveria o jornal aceitar?

Entrevistar uma figura como o Presidente da República ou o primeiro-ministro, que raramente falam aos órgãos de informação, é ocasião aproveitada para os jornalistas passarem em revista com o interlocutor os mais relevantes temas da agenda pública. Não deixou por isso de surpreender que as duas páginas da entrevista com Aníbal Cavaco Silva surgida na edição do PÚBLICO do passado dia 12 e conduzida pelo próprio director, José Manuel Fernandes, se debruçassem sobre um único tópico: o Estatuto Autonómico dos Açores. O provedor calcula que o entusiasmo dos leitores terá sido igual ao de 31 de Julho, quando Cavaco Silva sobressaltou um país a banhos com uma comunicação televisiva versando apenas o mesmo tema. Entusiasmo tanto maior quanto os leitores começavam por ler na primeira página uma chamada para a entrevista sem os prevenir de que a conversa não passaria daquele assunto.

Não compete naturalmente ao provedor comentar a indignação com que o inquilino de Belém encara uma diminuição dos poderes presidenciais através de lei ordinária (e não em sede de revisão constitucional, como seria legítimo), nem os recursos de Cavaco para alertar o país e os políticos acerca do que considera uma grotesca violação da lei fundamental e para lutar contra ela – o que é um direito que lhe assiste. Mas importa saber se porventura o PÚBLICO não se terá deixado utilizar como instrumento dessa manobra, o que contrariaria as normas de independência política consagradas no seu Estatuto Editorial.

Pelo menos um leitor exprimiu preocupações com a questão. José Carlos Gomes, também jornalista, escreveu ao provedor, considerando: “Fico com uma sensação: esta entrevista interessa bem mais ao Presidente do que ao jornal ou aos leitores. Além disso, surge numa altura em que as fricções entre o Governo e a Presidência da República estão no ponto máximo. (...) A entrevista centra-se quase exclusivamente na famigerada comunicação ao país do Presidente, transpirando do texto uma retórica de justificação desse acto institucional de algum peso e servindo a entrevista para que Cavaco Silva faça pressão pública e política sobre o assunto que motivou a tal comunicação ao país: o Estatuto Autonómico dos Açores”.

As suspeitas de José Carlos Gomes assentam em quatro dúvidas: “Por que motivo a entrevista é apenas sobre um assunto? Foi o jornal que solicitou a entrevista ou foi a Presidência que sugeriu que o Presidente estava interessado em dar uma entrevista sobre o tema em causa? A entrevista foi presencial ou efectuou-se por escrito (...)? O entrevistador pôde colocar as perguntas que entendeu ou as questões foram limitadas pela Presidência?” E fundamenta: “Se a iniciativa não partiu do jornal, se o jornalista não pôde colocar livremente as perguntas que bem entendesse e/ou se as respostas foram dadas por escrito a partir de Belém, os leitores deveriam ter sido [disso] informados pelo jornal. A diferença entre um trabalho jornalístico e uma peça de comunicação de um político pode ser ténue, e os leitores de um jornal devem saber se compram gato por lebre ou não”.

Bastará ler o diálogo encetado na entrevista para perceber que não foi dada por escrito. É aliás o que afirma José Manuel Fernandes no esclarecimento solicitado pelo provedor: “A entrevista foi presencial. Todas as entrevistas não presenciais são devidamente assinaladas pelo PÚBLICO. Teve lugar no Palácio de Belém, na sala onde costuma reunir o Conselho de Estado. O som digital da entrevista está guardado nos nossos arquivos”.

Quanto ao solitário tema da conversa, explica o director: “O PÚBLICO tem vindo a solicitar à Presidência da República a realização de uma entrevista sem temática limitada desde que o actual Presidente da República tomou posse. (...) O Presidente manifestou disponibilidade para falar sobre um tema concreto, actual e controverso: o Estatuto dos Açores. O PÚBLICO considerou que, sem prejuízo de manter o seu pedido para uma entrevista sem temática limitada, o tema era importante e polémico e justificava uma entrevista. Como se pode verificar lendo a última pergunta (‘Não houve nenhuma relação causal entre as várias decisões de promulgação ou veto que teve de tomar durante este Verão – e foram muitas?’) e a última resposta (‘Não. Este é um assunto muito específico e com uma importância particular, único no seu alcance político-institucional’), o PÚBLICO tentou, mesmo assim, alargar o âmbito da entrevista a outras decisões recentes do Presidente, mas este não quis falar sobre qualquer outro tema. Pense-se o que se pensar do Estatuto dos Açores, as opiniões do Presidente são importantes e são notícia. Assim o comprovou o impacto que a entrevista teve”.

Esclarece ainda José Manuel Fernandes: “Nenhuma questão foi combinada previamente. Sobre o tema da entrevista, o jornalista pôde colocar todas as questões que desejou e o Presidente não se recusou a responder a nenhuma”. E, por último, uma resposta a um rumor: “O PÚBLICO tem conhecimento de que círculos governamentais e do PS puseram a correr o boato de que a entrevista teria sido dada por escrito, até porque isso foi perguntado a jornalistas da nossa equipa. Como todos sabem, não só nada se pode fazer contra os boatos, como estes são a forma mais cobarde de tentar descredibilizar quem não se consegue atingir por outros meios”.

Julga o provedor que, no balanço final, os leitores do PÚBLICO poderão sair prejudicados, já que esta peça deverá diminuir as hipóteses de Cavaco Silva vir a conceder (pelo menos a curto prazo) a tal grande entrevista sem restrições (pedida não só por este mas, provavelmente, por todos os órgãos de informação de âmbito nacional), para não fazer passar a ideia de que privilegia este jornal em particular (o qual – recorde-se – já anunciara em exclusivo a comunicação presidencial de 31 de Julho).

Não obstante, o provedor considera que José Manuel Fernandes tem razão ao acentuar o interesse noticioso das declarações de Cavaco Silva sobre o estatuto açoriano, pelo que se justifica, em termos meramente jornalísticos, a oportunidade da entrevista exclusiva ao Presidente, mesmo que restringida a esse assunto e por ele solicitada. Tratou-se de uma opção legítima, tal como, aliás, dentro da sua autonomia editorial, e feitas as devidas ponderações, seria também legítimo que o jornal decidisse o contrário.

Existe porém um problema de forma, não de conteúdo. Para garantir a transparência do processo, faltou informar na ocasião os leitores daquilo que José Manuel Fernandes faz no esclarecimento de hoje: que Cavaco havia sugerido a entrevista e imposto a abordagem de um único tema e que o PÚBLICO resolvera, mesmo assim, aceitar. Seria a forma de o jornal se distanciar e explicar ao seu público: “Esta não é a entrevista que gostaríamos de fazer ao Presidente, mas ele só quer falar sobre isto – é melhor que nada”. Assim, apresentando a entrevista como coisa normal, é que não parece normal.

CAIXA:

As aparências iludem

No perfil de “Dragan Dabic”, a personagem em que Radovan Karadzic se metamorfoseou enquanto viveu clandestino em Belgrado, publicado nas págs. 5-6 do P2 de 4 de Agosto, a jornalista Isabel Gorjão Santos assumiu que o homem mantinha até uma página na internet: “O site é modesto, é certo, mas Dabic não se esquece de avisar que podem consultá-lo para conferências, consultas ou programas de televisão”. Contestou porém um leitor não identificado: “Todo o artigo parte do pressuposto de que o site era mais uma forma de Karadzic construir a sua ‘personagem’(...). Na verdade verificando a informação sobre o domínio dragandabic.com, verifica-se que o mesmo foi criado em 22 de Julho passado [um dia após a notícia da detenção de Karadzic, por alegados crimes de guerra no conflito da Bósnia]. O que provavelmente aconteceu é que, quando surgiram as notícias da prisão de Karadzic, alguém se apressou a registar o domínio e a ‘inventar’ uma suposta página pessoal de Dragan Dabic (...) Na peça jornalística em causa, esse facto foi aparentemente ignorado, sendo o site apresentado como genuíno. Aliás, se fosse feita uma análise mais atenta ao site, verificar-se-ia de que o tom do mesmo é quase cómico, mencionando o que o ‘Dr. Dabic’ gosta de comer e principalmente pelo ‘provérbio chinês’ que aparece em ultimo lugar: ‘A wise man thinks with his own head – while an ignorant one follows the mainstream mass media news and reports’ [‘Um sábio pensa pela sua cabeça, enquanto um ignorante segue as notícias e reportagens dos media de referência’].

Submetida a questão à jornalista, Isabel Gorjão Santos anunciou um artigo para esclarecer o assunto, cuja publicação está prometida há mais de um mês e tem vindo a ser adiada – será para amanhã, segunda-feira, segundo a sua última comunicação. Mas entretanto enviou uma explicação, reconhecendo que “as observações do leitor são pertinentes” e adiantando: “Houve sobretudo dois motivos que me levaram a atribuir o site à personagem criada por Karadzic. Antes de mais, o facto de agências noticiosas como a AFP e órgãos de informação internacionais como Le Monde ou a BBC terem referido a página como o site de Dragan Dabic. Para além disso, as informações que se encontravam naquela página coincidiam com os relatos de pessoas que privaram com a personagem que Karadzic criou. Pareceu-me então muito plausível que um médico que dá consultas e palestras tivesse um site, e acabei por não investigar a hipótese de alguém ter criado, num par de horas, uma página com fotografias e a biografia de Dragan Dabic. No entanto, era exactamente isso que tinha acontecido. The New York Times ou o Corriere della Sera publicaram, dias depois, a história do site e do seu autor, que não revela a verdadeira identidade mas respondeu às questões enviadas pelo PÚBLICO. Explica como fez aquela página e que pretendeu ajudar a criar um mito em volta de Dragan Dabic. Ficou então claro que (...) as citações feitas a partir do site não são verdadeiras e que aquela página que se apresentava como oficial era afinal, como disse o Corriere della Sera, ‘a piada do ano’ na internet”.

Como é costume avisar nas travessias de ferrovias, um comboio pode esconder outro. E os jornalistas precisam de muitas cautelas para não serem atropelados por comboios.

Publicada em 21 de Setembro de 2008

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR:

Carta do leitor José Carlos Gomes

Escrevo-lhe a propósito da entrevista ao Presidente da República dada à estampa na edição de hoje (12 de Setembro de 2008) do jornal PÚBLICO.

Lendo o trabalho, assinado pelo director do jornal, fico com uma sensação: esta entrevista interessa bem mais ao Presidente da República do que ao jornal ou aos leitores. Além disso, surge numa altura em que as fricções entre o Governo e a Presidência da República estão no seu ponto máximo desde o início do mandato de Cavaco Silva. Indo ao conteúdo, percebe-se que a entrevista se centra quase exclusivamente na famigerada comunicação ao país do Presidente da República, transpirando do texto uma retórica de justificação desse acto institucional de algum peso e servindo a entrevista para que Cavaco Silva faça pressão pública e política sobre o assunto que motivou a tal comunicação ao país: o Estatuto Autonómico dos Açores.

Perante este quadro, como leitor mas também como jornalista, fico com algumas dúvidas e ao Provedor as exponho:

- Por que motivo a entrevista é apenas sobre um assunto?
- Foi o jornal que solicitou a entrevista ou foi a Presidência que sugeriu que o Presidente da República estava interessado em dar uma entrevista sobre o tema em causa?
- A entrevista foi presencial ou efectuou-se por escrito, sendo as respostas enviadas ao jornal por alguém em nome de Cavaco Silva?
- O entrevistador pôde colocar as perguntas que entendeu ou as questões foram limitadas pela Presidência?

Como compreenderá, se a iniciativa não partiu do jornal, se o jornalista não pôde colocar livremente as perguntas que bem entendesse e/ou se as respostas foram dadas por escrito a partir de Belém, os leitores deveriam ter sido informados desse(s) facto(s) pelo jornal. A diferença entre um trabalho jornalístico e uma peça de comunicação de um político pode ser ténue e os leitores de um jornal devem saber se compram gato por lebre ou não.

José Carlos Gomes

Explicações do director do PÚBLICO

1. A entrevista foi presencial. Todas as entrevistas não presenciais são devidamente assinaladas pelo PÚBLICO. Teve lugar no Palácio de Belém, na sala onde costuma reunir o Conselho de Estado. O som digital da entrevista está guardado nos nossos arquivos.

2. O PÚBLICO tem vindo a solicitar à Presidência da República a realização de uma entrevista sem temática limitada desde que o actual Presidente tomou posse. No início da semana em que a entrevista foi editada, o Presidente da República manifestou disponibilidade para falar sobre um tema concreto, actual e controverso: o Estatuto dos Açores. O PÚBLICO considerou que, sem prejuízo de manter o seu pedido para uma entrevista sem temática limitada, o tema era importante e polémico e justificava uma entrevista. Como se pode verificar lendo a última pergunta e a última resposta, o PÚBLICO tentou, mesmo assim, alargar o âmbito da entrevista a outras decisões recentes do Presidente, mas este não quis falar sobre qualquer outro tema. (Da entrevista: "Não houve nenhuma relação causal entre as várias decisões de promulgação ou veto que teve de tomar durante este Verão, e foram muitas?" "Não. Este é um assunto muito específico e com uma importância particular, único no seu alcance político-institucional").

3. Nenhuma questão foi combinada previamente. Sobre o tema da entrevista o jornalista pôde colocar todas as questões que desejou, e o Presidente não se recusou a responder a nenhuma delas.

4. Pense-se o que se pensar do Estatuto dos Açores, as opiniões do Presidente são importantes e são notícia. Assim o comprovou o impacto que a entrevista teve.

5. Para além da entrevista, na mesma edição em que esta foi publicada o PÚBLICO dedicou uma página ao seu enquadramento político e institucional, para que os leitores pudessem ajuizar melhor sobre o que estava em causa.

6. O PÚBLICO tem conhecimento de que círculos governamentais e do PS puseram a correr o boato de que a entrevista teria sido dada por escrito, até porque isso foi perguntado a jornalistas da nossa equipa. Como todos sabem, não só nada se pode fazer contra os boatos, como estes são a forma mais cobarde de tentar descredibilizar quem não se consegue atingir por outros meios.

José Manuel Fernandes

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