sábado, 23 de agosto de 2008

Pontos de vista sobre a crise

É legítimo que o PÚBLICO não se limite à apresentação seca da notícia, mas faça também a sua análise, com uma interpretação própria

“Principais problemas da economia portuguesa são internos, diz o FMI” – e isto dizia por sua vez o PÚBLICO em manchete publicada a 18 de Julho. O conteúdo da notícia, apontando para razões estruturais da economia portuguesa, e não para a conjuntura internacional, como principal motivo da crise que o país atravessa, suscitou uma chamada de atenção do leitor Miguel Carvalho, alegando que as análises do FMI (Fundo Monetário Internacional) invocadas não permitiam tal conclusão.

Explanava o texto da pág. 1 do PÚBLICO: "A crise internacional não é a principal causa para o ritmo de crescimento lento que Portugal irá continuar a apresentar neste ano e no próximo, ao contrário do que tem vindo a ser defendido pelo Governo. A garantia é dada pelo FMI". A fonte era o mais recente relatório sobre Portugal elaborado pela instituição financeira. A ideia-base reforçava-se no desenvolvimento publicado na secção de Economia (pág. 37), sob o título “FMI garante que principais problemas da economia portuguesa são domésticos”, com autoria do jornalista Sérgio Aníbal.

Defende porém o leitor que “não há contradição nenhuma entre o relatório do FMI e o que o Governo diz sobre o abrandamento este ano da economia”. E “para que fique claro” o que afirma, cita a “visão do FMI”: "O crescimento abrandará provavelmente em 2008 para cerca de 1,25 por cento e para cerca de 1,00 por cento em 2009, por influência do fraco crescimento dos países parceiros, da turbulência financeira internacional e da subida do preço das mercadorias”. Conclui Miguel Carvalho: “Não há mais referência nenhuma no relatório sobre este abrandamento de curto prazo. Agora repare: todos os pontos que o FMI refere são externos. A contradição é portanto inventada”.

Existe aqui uma nuance: a questão do curto prazo. Alega o leitor que é isso que está em causa (ou seja, o que se passará neste ano e no próximo) e que para esse período o FMI não aponta outros factores na evolução da situação nacional: “O Governo tem-se queixado de questões conjunturais externas para explicar o abrandamento este ano da economia, o próprio texto da capa refere a quebra de curto prazo”, explica, adiantando que o problema seria diferente se a perspectiva fosse o longo prazo, pois, a esse nível, sim, “o FMI refere-se a questões estruturais (que por definição explicam comportamentos num horizonte temporal largo, e não de apenas um ano) internas.”

Mas são precisamente as mesmas razões apontadas pelo FMI que levam Sérgio Aníbal a defender o que escreveu, em particular este período do relatório da instituição, que cita na notícia (aqui traduzido pelo provedor de forma um pouco diferente, se bem que sem alterar o sentido): “A deterioração do ambiente económico global está a obstaculizar a retoma portuguesa, mas os problemas fundamentais condicionando a economia do país são de natureza doméstica: elevados défices externo e público; endividamento muito alto das famílias, das empresas e do Estado; e um substancial desnível em matéria de competitividade”.

Conclui por isso o jornalista, solicitado pelo provedor a esclarecer o assunto: “Assim, o FMI considera que, apesar de haver problemas conjunturais (externos) a afectar Portugal, são os problemas estruturais (internos) que mais estão a limitar o crescimento da economia. O Governo, por seu lado, tem salientado no seu discurso que os problemas estruturais (internos) estão a ser resolvidos pelas políticas postas em prática e que são os problemas conjunturais (externos) o principal entrave ao crescimento da economia. ‘Estamos agora melhor preparados para enfrentar a crise’, tem sido a frase mais utilizada pelos membros do Governo. Foi aqui, quando escrevi o artigo, que encontrei a contradição. E, ao citar aquela frase do relatório, referi igualmente a existência de problemas conjunturais externos, ao contrário do que diz o leitor. Admito que, em questões de análise de discurso político, outras interpretações sejam possíveis, porventura até mais correctas do que a minha. Mas gostava de deixar claro que procuro não inventar quando escrevo os meus artigos, coisa que o leitor, de forma injusta, rapidamente concluiu”.

Em suma, acerca do mau momento que estamos a viver (e que, na verdade, não sabemos se é a curto prazo, já que o sofremos desde quase o início do século XXI), a conjuntura externa só terá vindo agravar ainda mais uma situação já de si difícil de sustentar devido aos problemas estruturais do edifício económico e financeiro nacional.

Poderá não ser esta a perspectiva que mais agradará às autoridades portuguesas, mas é uma leitura que, quanto ao provedor, não só é possível extrair do relatório do FMI como é legítimo que o PÚBLICO faça, dado que a sua função como jornal não se limita à apresentação seca da notícia, mas também ao seu desenvolvimento analítico: “A informação complementar e diferente, o background e protagonização da notícia, a análise e a interpretação indispensáveis à sua compreensão integram e distinguem o estilo do PÚBLICO”, lê-se no seu Livro de Estilo, a abrir o subcapítulo “Os factos e a opinião”.

Claro que teria sido interessante exercer-se o contraditório com uma fonte oficial (preferencialmente do gabinete do primeiro-ministro ou do ministro das Finanças), até para satisfazer o ponto 15 dos “Princípios e normas de conduta profissional” do mesmo Livro de Estilo (“Qualquer informação desfavorável a uma pessoa ou entidade obriga a que se oiça sempre o ‘outro lado’ em pé de iguladade e com franqueza e lealdade”) – e, na verdade, não parece que tenha sido sequer esboçada uma tentativa nesse sentido.

O que não elimina o mérito do jornalista em procurar aprofundar a informação. Mas que, na óptica do provedor (embora não sendo objecto da queixa apresentada), importa sublinhar, uma vez que se observa frequentemente a fuga ao contraditório na atitude de muitos jornalistas do PÚBLICO, aqui se deixando a recomendação para o cumprimento escrupuloso desse princípio.

Miguel Carvalho tem sido um leitor atento deste jornal, adiantando regularmente observações críticas que, com frequência, o provedor considera pertinentes. Mais do que isso, é o principal animador do blogue “A Pente Fino” (http://apentefino.blogs.sapo.pt), onde um grupo de pessoas se dedicam a registar o que consideram “disparates” dos órgãos de informação.

Nem sempre o provedor tem atendido às reclamações de Miguel Carvalho, enviadas após divulgação no blogue, pois, em regra, prefere dar voz a queixas originais e não àquelas já colocadas no espaço público (a não ser que sejam incontornáveis no diagnóstico às questões editoriais do jornal). Entende, contudo, que iniciativas como a deste blogue, com cidadãos, individualmente ou em grupo, escrutinando a actividade dos jornalistas, constituem ainda a forma mais eficaz de regulação dos media, os quais nunca deixarão de estar atentos ao feedback que recolhem por parte da sociedade civil. Afinal de contas, garantida a liberdade de expressão, cada sociedade tem a informação que merece.

CAIXA:

Bota e perdigota
Há uma semana, o provedor recenseava algumas das últimas manifestações da “praga de Catual” nas páginas do PÚBLICO. Mas esta frequente falta de concordância entre sujeito e predicado não é a única situação em que, na escrita do jornal, a bota muitas vezes não dá com a perdigota. Outros casos comuns têm a ver com falta de correspondência no género ou na flexão de número. Exemplos recentes: “O temas negros e obscurantistas da sua poesia, muita dela enraizada em lendas sérvias, gerava estranheza” (23 de Julho, pág. 5); “A colagem ao discurso oficial e à propaganda do Governo continuam a render” (antetítulo de artigo de opinião, 17 de Julho, pág. 33); “A inflação e a alta de juros colocou ainda mais famílias em dificuldade” (entrada de artigo, 10 de Julho, pág. 4); “A qualidade dos produtos do mar foram uma surpresa para mim” (“Pública”, 22 de Junho, pág. 38); “A decisão por parte da Estónia de banir os símbolos do martelo e da foice e da cruz suástica foi descrito pela Rússia, na altura, como uma ‘blasfémia’” (18 de Junho, pág. 19); “Mais de metade ‘fica ansioso’ se não tiver o telemóvel” (título de notícia sobre um inquérito à juventude, 3 de Junho, pág. 10); “Os berros do speaker da Volta a Portugal em bicicleta não deixou ninguém dormir” (“Inimigo Público”, 15 de Agosto, pág. 2); “A vontade que o Presidente francês mostrou em acalmar os ânimos no conflito russo-georgiano são meritórios” (13 de Agosto, pág. 36); “As diferenças entre o que é dito e a realidade é ainda maior do que aquela que separa os homens das mulheres" (5 de Agosto, pág. 35); "O resultado das peritagens efectuadas ontem pela PJ ainda não são conhecidos" (8 de Julho, pág. 22); "O ex-investigador da PJ, cujo afastamento das funções de coordenador das investigações foram atribuídas pelos responsáveis da Judiciária a declarações prestadas” (5 de Julho, pág. 14). O leitor José Oliveira, que detectou as últimas cinco ocorrências, pergunta “se é isto que nos dão em troca dos oito euros semanais que damos, com esforço, pelo jornal”. Dão-nos muito mais (e o público também dá mais: 8,7 euros), mas, de qualquer modo, volta a recomendar-se mais atenção aos jornalistas e (quando existem) revisores.

Publicada em 24 de Agosto de 2008

NOTA: Não se publicará a crónica do provedor nas próximas três semanas.

2 comentários:

Miguel Carvalho disse...

Caro Provedor e caro Sérgio Anibal, só recentemente numa conversa com um amigo é que me lembrei que não tinha respondido a este texto que me era dirigido. Peço desculpa por isso. Cá vai pois a minhas resposta:

1.
> Alega o leitor que é isso que está em causa (ou seja, o que se passará neste ano e no próximo) e que para esse período o FMI não aponta outros factores na evolução da situação nacional.

Não é uma alegação, é uma constatação de um facto. O período temporal foi o Público que escolheu, não fui eu. O Público diz "A crise internacional não é a principal causa para o ritmo de crescimento lento que Portugal irá
continuar a apresentar neste ano e no próximo, ao contrário do que tem
vindo a ser defendido pelo Governo. A garantia é dada pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI)"

Volto pois a citar a frase do FMI:
"Growth will likely slow in 2008 to about 1¼ percent, and to about 1
percent in 2009, driven by weaker partner country growth, the
international financial turbulence, and higher commodity prices."

Repare, ambos os textos referem os mesmos dois anos. O do Público diz que a causa principal não é a crise internacional, o FMI refere três causas, todas internacionais. Contradição mais explícita não poderia haver.


2.
> Conclui por isso o jornalista, solicitado pelo provedor a esclarecer o assunto: “Assim, o FMI considera que, apesar de haver problemas conjunturais (externos) a afectar Portugal, são os problemas estruturais (internos) que mais estão a limitar o crescimento da economia. O Governo, por seu lado, tem salientado no seu discurso que os problemas estruturais (internos) estão a ser resolvidos pelas políticas postas em prática e que são os problemas conjunturais (externos) o principal entrave ao crescimento da economia. ‘Estamos agora melhor preparados para enfrentar a crise’, tem sido a frase mais utilizada pelos membros do Governo. Foi aqui, quando escrevi o artigo, que encontrei a contradição.

Estamos de acordo. São problemas internos que estão/estavam a limitar o crescimento. Também estamos de acordo que o governo tem dito que os problemas "estão a ser resolvidos". Há alguma contradição entre "estar a ser melhorado" e "estar mau", como afirma agora Sérgio Anibal (SA)? Concorda com a afirmação "a economia angolana está mal, mas está a ser melhorada"? Se concorda, perceberá que não há ali contradição nenhuma.

3.
> E, ao citar aquela frase do relatório, referi igualmente a existência de problemas conjunturais externos, ao contrário do que diz o leitor.

Não admito que me chamem mentiroso! Desafio-lhe a mostrar onde é que eu o acusei de não referir problemas externos. Ou um pedido de desculpas.

Cumprimentos
(Julgo que tenho outro texto para responder, o que farei mais tarde)

Miguel Carvalho disse...

Um acrescento,
não só não acusei SA de omitir parte do relatório do FMI, como no meu blogue (que por ser referido aqui, até o podemos considerar como texto de apoio) menciono essa referência por parte de SA.