segunda-feira, 14 de julho de 2008

Onde começa a «lei da rolha»?

A nova forma de publicação de comentários dos leitores no PUBLICO.PT alerta para a responsabilidade social do jornal

O provedor já abordou há três meses o tema do fluxo de comentários dos leitores difundidos no PUBLICO.PT, com esta recomendação: “O crescente volume de comentários não deve impedir a aplicação dos princípios de filtragem em vigor. Caso contrário, o PUBLICO.PT arrisca-se a ser vítima do seu próprio sucesso”.

Verificava-se com efeito a dificuldade dos responsáveis do site do PÚBLICO, cada vez mais submergidos pelas opiniões enviadas pelos leitores, na gestão quotidiana desse movimento, por forma a garantir que todos os comentários divulgados obedecessem aos critérios de publicação pré-definidos. Importa que as áreas de comentários on-line – tal como os media em geral – sejam sobretudo espaços de liberdade, mas é também natural que obedeçam ao estatuto editorial de cada órgão de informação, assim como às leis que balizam o direito à liberdade de expressão e informação, e que basicamente têm a ver com a protecção de outros direitos de cidadania.

Havia ocasionais reclamações quanto à divulgação de comentários que supostamente não respeitariam tal normativo, mas na maior parte das queixas os leitores clamavam contra a “censura” sobre os seus próprios comentários. Era habitual esses comentários ficarem retidos a aguardar moderação e os autores perderem-lhes o rasto, não percebendo até que haviam sido já publicados. Explicou o editor do PUBLICO.PT, António Granado, ao provedor no início de Maio: “O atraso na publicação de comentários nada tem a ver com censura, como está explicado nos nossos critérios de publicação dos comentários (...): ‘Os comentários são para nós secundários relativamente às notícias. O PUBLICO.PT tenta publicar os comentários dos leitores quando há questões polémicas em debate na actualidade, mas pode acontecer que não haja disponibilidade de tempo para ler e editar os comentários – uma tarefa lenta e apenas passível de ser executada por um jornalista experiente. Pode acontecer que durante um dia não seja publicado nenhum comentário’.”

Isto era antes. O provedor notou que, nos últimos tempos, a correspondência de leitores relativamente ao tema deixou de incidir na “censura” para se concentrar na denúncia do conteúdo de alguns comentários.

Considerou por exemplo, João Ramires, ainda em Maio: “Sou leitor habitual do PÚBLICO on-line (...). Gostaria de o alertar para alguns comentários (...) que podem ser – em minha opinião – ofensivos para os leitores. É um tema muito sensível limitar a opinião dos outros, mas já que existem regras para a publicação dos comentários poderá verificar se elas estão a ser seguidas”. O leitor transcreve então dois comentários com origem na mesma pessoa (um pseudónimo), um deles imaginando um desastre com um autocarro repleto de crianças, descrito com pormenores que indiciam crueldade e sadismo, e o outro revelando o mesmo tipo de sentimentos no relato muito detalhado de uma situação de natureza pedófila.

É óbvio que este é o tipo de comentários que contrariam um dos critérios de publicação do PÚBLICO: “São inaceitáveis comentários que contenham (...) insultos, linguagem grosseira ou difamatória, (...) incitações ao ódio ou à violência ou que preconizem violações dos direitos humanos”. E no entanto estavam on-line, pelo menos quando o leitor protestou.

Já no mês seguinte, reclamava Ricardo Agostinho: “Como é possível que um jornal que se quer sério e rigoroso (...) permita a publicação na área de comentários de mensagens de natureza obscena e que nada têm a ver com o conteúdo da notícia? Não sou a favor da censura e penso que todos devem ter liberdade e espaço para se exprimirem, mas, quando as regras não são respeitadas e isso coloca em causa a liberdade de opinião de outrem, considero que algo deve ser feito”. O leitor citava a seguir o alvo da sua ira, “não deixando de sublinhar que se trata de uma entre muitas mensagens que poderia eventualmente enviar”. Era como descrevia, com a agravante de difamar o autor de um anterior comentário à mesma notícia.

A propósito de uma notícia sobre a organização separatista basca ETA, Amílcar Lopes António, por seu turno, chamou a atenção para o seu comentário de resposta a um outro (de um anónimo de Santa Cruz do Bispo) fazendo a apologia do terrorismo (“Viva a ETA! Só é pena não haver um movimento desses em Portugal para haver luta armada contra os interesses instalados”). Reagira on-line o leitor: “Quando o PÚBLICO permite que, mesmo apenas na sua edição digital, se escrevam vivas a organizações de Extorsionistas Totalitários e Assassinos, mal vai a imprensa. Que nem tem memória para saber que na região onde predominam estas actividades não existe liberdade de expressão. E onde os jornalistas, sem aspas, pagam com a vida essa ousadia. Este laxismo do PÚBLICO é simplesmente inadmissível!” (O provedor considera, apesar de tudo, que o comentário em causa se situa nos limites do admissível).

Num outro comentário reagindo a uma notícia sobre o presidente Cavaco Silva, o mesmo leitor apontou o dedo ao problema: “E o Livro de Estilo do PÚBLICO? Onde foi parar? Ao Ecoponto? Compreendo que seja difícil moderar centenas de comentários diários. A sua suspensão também não seria uma boa opção, porque não raras vezes estes são mais interessantes e aportam mais informação e veracidade do que a própria notícia. Mas há um mínimo de dignidade. Ou não há? Alguns dos comentários a esta notícia mostram o que em democracia e boa educação merece, no mínimo, a lei da rolha ou da tesoura. Não entendo que um jornal que se tem por sério permita publicar em formato digital o que jamais ousaria publicar em papel. A menos que o civismo seja também já um valor do passado. Espero que não”.

O crescimento do número de comentários controversos no PUBLICO.PT tem porém uma razão, confome revelou António Granado ao provedor: “Houve uma mudança na forma de aprovação dos comentários no site do PÚBLICO, que passaram a ser verificados apenas a posteriori. Esta mudança deveu-se ao crescimento exponencial de comentários dos últimos meses, que estava a tornar ingerível a sua aprovação a priori em tempo útil. Para além disso, o facto de os comentários poderem entrar directamente sem verificação potencia o diálogo entre os leitores e torna a discussão mais viva. O modelo é utilizado em muitos outros sites noticiosos internacionais, com óbvias vantagens. É evidente que, havendo muito mais comentários e comentadores, o sistema pode ser alvo de alguns abusos (...). Os comentários insultuosos, que violam as mais básicas regras de convivência, são imediatamente apagados, mal são detectados por nós ou denunciados pelos nossos leitores. Até agora, o sistema tem estado a correr bem e parece-me que o nível geral da discussão até tem aumentado, não obstante aparecerem mais ‘abusadores’.”

“Os comentários são publicados automaticamente, sendo os leitores responsáveis pelo seu conteúdo”, diz a nova norma. Esta é uma alteração importante na filosofia editorial de um site noticioso. Sobre os próprios leitores (que possuem agora à disposição, no fim da cada reacção on-line, uma funcionalidade que diz “Denunciar este comentário”), passa a recair em grande parte a regulação destas opiniões.

Terá sido o PUBLICO.PT já vítima do seu sucesso? O provedor reconhece ser esta a tendência na internet, mas não pode deixar de alertar para os seus perigos, devido ao afrouxamento do sentido de responsabilidade social do jornal. Mesmo que um comentário ofensivo da reputação de uma pessoa ou instituição ou violador da intimidade de um cidadão esteja on-line apenas por umas horas, não deixou por isso de ir contra as leis que regulam a liberdade de expressão. Estará o PÚBLICO disposto a responder por isso?

CAIXA:

Uma capitis diminutio para os jornalistas

Se a internet democratizou saudavelmente a participação dos cidadãos em geral na troca de informação e ideias no espaço público, vive-se ao mesmo tempo em Portugal uma restrição das formas de praticar o jornalismo. O mais recente constrangimento, cortesia da actual maioria parlamentar e do seu Governo (apesar do veto inicial de Cavaco Silva), foi a entrada em vigor do novo Estatuto do Jornalista, a vários títulos uma aberração quanto ao exercício de um jornalismo livre. Esta semana, foi dada aos jornalistas a possibilidade de elegerem representantes seus para uma comissão que, no âmbito do novo Estatuto do Jornalista, possuirá poderes sancionatórios sobre os profissionais que, no entender da própria comissão, contrariarem um normativo deontológico que ela interpretará. Essas punições irão até 12 meses de suspensão da carteira profissional. Apresentaram-se duas listas, uma patrocinada pelo próprio Sindicato dos Jornalistas e outra por dezenas de conhecidos profissionais. O provedor acha curioso que, mais de três décadas após a extinção da censura em Portugal, surjam tantos jornalistas a quererem policiar jornalistas, desconhecendo ele de onde lhes advém a superioridade moral de que se julgam investidos para impedirem a actividade profissional dos colegas. Que sentido fará, numa sociedade aberta, a existência de uma comissão da iniciativa do Estado e por ele tutelada, onde os eleitos pelos jornalistas estão em minoria (pelo que não se trata de um órgão de auto-regulação), com poderes para decidir quem pode ou não informar? Os limites da liberdade de informação estão previstos nas leis gerais e abrangem da mesma forma (como deve ser) jornalistas e todos os restantes cidadãos. Mas agora a condição de jornalista está afectada por esta capitis diminutio. A um jornalista do PÚBLICO que eventualmente venha a ser assim suspenso, este provedor só pode recomendar que invoque o nº 1 do artigo 37º da Constituição da República Portuguesa (“todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”) para continuar a exercer a profissão.

Publicada em 13 de Julho de 2008

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