domingo, 30 de março de 2008

Novas coisas do Diabo

Não fora o mau serviço prestado aos leitores, o provedor só teria a agradecer ao responsável pelo fecho da edição do PÚBLICO de segunda-feira (24 de Março). É que a manchete desse dia, "Fisco multa noivos que não derem informações sobre casamanto", acentuava tudo o que aqui se dissera na véspera sobre gralhas, lapsos e erros crónicos do jornal (“O Diabo está nos detalhes”). Houve pelo menos um leitor, Francisco Crispim, que no próprio dia não deixou passar o assunto em claro: “Depois da crónica de ontem do provedor, nada melhor do que a manchete da edição impressa de hoje. Se dúvidas restassem quanto ao ‘manto’ (este sim...) de descuido e deixa-andar que cobre neste momento o PÚBLICO, elas dissiparam-se completamente. Ora, isto está a minar, de forma talvez irremediável, a credibilidade do jornal junto dos leitores. Não haverá nada a fazer?”

Porque entretanto ocorreram casos idênticos ao longo da semana, o provedor julga ser de interesse para o PÚBLICO e os seus leitores insistir no tema. Exemplo: um dos alertas lançados dizia respeito à constante falta de concordância verbal em frases contendo como sujeito o pronome relativo “que” (como em, correctamente, “Era este Catual um dos que estavam corruptos pela Maumetana gente”, de Os Lusíadas). Pois na edição da última sexta-feira lá vinha na pg. 7 do P2, como entrada ao obituário de Richard Widmark (o que implica responsabilidade pelo menos ao nível de editor): “Foi um dos mais significativos actores do pós-guerra americano. Um dos que melhor encarnou a ambiguidade do anti-herói”.

Falando ainda de concordâncias verbais, uma situação tem levado o leitor José Oliveira ao desespero (conforme já referido no blogue do provedor). Indignou-se primeiro quando, a 25 de Janeiro, na pg. 34, um jornalista da secção de Desporto escreveu que “a desconfiança em relação a Hicks e Gillett são, no entanto, recentes e não estiveram presentes”, em vez, naturalmente, "a desconfiança em relação a Hicks e Gillett é, no entanto, recente e não esteve presente”. E quando o mesmo jornalista voltou ao mesmo erro na pg. 29 da edição de 22 de Março (“o prémio monetário que as vitórias representavam eram um estímulo importante, já que garantiam o pagamento dos salários") o leitor foi ao rubro: “Basta! Estou farto! Quando será que os revisores acordam e corrigem devidamente estes erros infantis de jornalistas ignorantes?” Que terá ele dito então, assim como muitos outros leitores, ao ler na 1ª página de anteontem (28 de Março): “A operação Ataque dos Cavaleiros causaram em três dias quase 200 mortos”? A questão aqui é só uma: onde têm os jornalistas a cabeça quando redigem estas coisas?

Há oito dias falava-se em repetição de notícias na mesma edição. Temos agora um caso de notícia repetida em diferentes edições: no “Pessoas” do P2 de 21 de Março (pg. 16), o destaque era "R.E.M. - Michael Stipe sai do armário" e na mesma secção dois dias depois (23 de Março, pg. 14) o destaque tinha por título "Michael Stipe - Vocalista dos REM revela que é gay", sempre com uma grande foto do protagonista (no mesmo concerto). Ainda por cima, a informação não era nova: fora revelada pela revista Time há sete anos, como o próprio PÚBLICO reconhecia logo a 21. A inexplicável redundância não escapou à observação de alguns leitores do PÚBLICO, conforme consta do blogue do provedor.

Igualmente indesculpável é escrever-se, como na pg. 7 da edição de quinta-feira, “tive um ano e tal sem ver o meu filho” em vez de “estive um ano e tal sem ver o meu filho”. Nada justifica a importação para a escrita desta corruptela da língua falada (se o jornalista quisesse transmitir a coloquialidade da expressão, o que não parecia ser o caso, deveria colocar apóstrofo no lugar da sílaba elidida).

E, já que falámos em obituários, veja-se o que apareceu na edição de 22 de Março a propósito da morte do militar e político Carlos Galvão de Melo: “Católico e patriota ferveroso, o general não deixou contudo de acompanhar a política nacional, criticando a sua mediocridade”. Redigindo deste modo, o jornalista assume como opinião sua que a política nacional é medíocre. Se o pensa, não o deve escrever, à luz do Livro de Estilo do PÚBLICO, pois trata-se de matéria opinativa introduzida em matéria noticiosa. Se não o pensa (como julga o provedor ser o caso), deveria ter colocado a palavra “mediocridade” entre aspas (se de facto o visado a usou nesse contexto).

Outra questão diabólica: factos históricos e nomes. Mantenhamo-nos ainda nos obituários: no artigo “Vida e morte da ‘duquesa vermelha’”, sobre a aristocrata espanhola Luísa Isabel Álvarez de Toledo, na pg. 10 do P2 desta quinta-feira (27 de Março), escreve o correspondente do PÚBLICO em Madrid, Nuno Ribeiro: “Como neta de Antonio Maura, ministro da República espanhola, era republicana”. É verdade que Maura, chefe do governo espanhol por cinco vezes (1903-04, 1907-09, 1918, 1919 e 1921-22), foi um destacado estadista do país vizinho, mas em qualquer dessas ocasiões esteve sempre no trono o rei Afonso XIII, que o indigitou. Maura morreu aliás em 1925, seis anos antes de ser instaurada a II República espanhola (e era um jovem estudante de Direito ao tempo da efémera I República, tendo iniciado a carreira política oito anos depois).

O leitor Marco Bertolaso, citado na anterior crónica do provedor por criticar a informação errada de que Angela Merkel foi o primeiro estadista a discursar em alemão no Knesset, voltou esta semana a reclamar sobre o tratamento de temas germânicos no PÚBLICO, a propósito da notícia "Empresas alemãs querem reforço da opção nuclear", na pg. 15 da edição de terça-feira (25 de Março): “Encontrei no artigo uma referência ao jornal ‘Deutsche am Welle’. Qualquer pessoa com conhecimentos básicos da língua alemã sabe que ‘Deutsche am Welle’ gramaticalmente não faz sentido nenhum. Mais importante: a Deutsche Welle não é um jornal, mas a Rádio e Televisão Internacional da República Federal. Esta instituição é bastante conhecida no mundo inteiro – com a excepção da redacção do PÚBLICO, parece”. Realmente...

Noutro capítulo, as ambiguidades da língua portuguesa tornam-se autênticas rasteiras para o jornalismo, onde a clareza deve estar acima de tudo. Foi dessa forma que o leitor P. B. Teixeira viu a manchete da edição de quarta-feira (26 de Março): “Bolsas recuperam mas a economia cai abaixo do previsto nos EUA”. “’Cai abaixo do previsto’ quer dizer cai ‘mais’ do que o previsto ou cai ‘menos’ (em valores absolutos)?” – interroga o leitor. “Genericamente, poderíamos dizer que ambas as interpretações são possíveis, embora a segunda me pareça mais natural, porque ‘queda’ já dá ideia de um valor negativo. Lendo o artigo percebe-se que é a primeira interpretação a que se pretende transmitir. Este excesso de polissemia da língua portuguesa é uma enorme qualidade na literatura, mas um defeito horrível em termos científicos (e jurídicos e etc…). Penso que é preciso ter um especial cuidado nestes casos, sobretudo porque uma alternativa clara está ali mesmo ao lado: ‘Economia cai mais do que o previsto nos EUA’. Nem sequer há a justificação da falta de espaço. Que nunca justifica um mau título”.

Ambígua é também como se classifica a expressão “duas mulheres envolvidas no caso, ambas portuguesas e conhecedoras de muitos empresários portugueses e espanhóis”, contida na notícia de terça-feira (pg. 4) sobre a libertação de um espanhol mantido sob sequestro em Monte Gordo. Será que o jornalista não poderia explicar que tipo de actividade leva mulheres a serem “conhecedoras de muitos empresários portugueses e espanhóis”?

Por fim, outra ambiguidade, muito mais sensível. A 1ª página da edição de sexta-feira era dominada pela fotografia de uma mulher numa sala de aulas sobre o seguinte título (acompanhado da respectiva notícia): “Docente do Porto fez queixa judicial contra toda a turma”. Deduzia-se que aquela era a professora levada à fama (apesar de anónima) pelo infausto episódio da disputa à volta do telemóvel de uma aluna da Escola Carolina Michaëlis, o que seria um importante exclusivo do PÚBLICO. Afinal, abrindo a pg. 10, descobria-se que a personagem da foto era um dos protagonistas da reportagem “Professores – Desencanto multiplica reformas antecipadas”, título que encimava a imagem de capa mas que, sendo despersonalizado (ao contrário da notícia sobre a professora do Porto), o leitor não ligava à pessoa. Quem olhou para a 1ª página sem ler o interior do jornal ficou a pensar ter por fim conhecido o rosto da professora da luta do telemóvel – e este arranjo enganador (que se poderia desfazer com uma simples legenda) não faz parte dos padrões de comportamento do PÚBLICO, cujo estatuto editorial rejeita “o sensacionalismo e a exploração mercantil da matéria informativa”. O provedor acredita não ter havido intenção malévola na maquetagem, mas não pode deixar de chamar a atenção para os perigos decorrentes deste tipo de descuidos, para mais sobre um tema que suscita tanta controvérsia na sociedade portuguesa.

A recomendação do provedor sobre estas matérias já foi feita há uma semana. Seria chover no molhado.

Publicada em 30 de Março de 2008

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