sábado, 26 de janeiro de 2008

Para onde foram as fontes?

Observemos várias manchetes exclusivas (ou “em primeira mão”, segundo a gíria) do PÚBLICO nos últimos dois meses: “Menezes cede ao PS para forçar acordo sobre leis eleitorais” (24/11), “Escolha de Vara para o BCP suscita suspeitas de interferências do PS” (24/12), “Joe Berardo e aliados compraram acções do BCP com crédito da Caixa” (04/01), “União Europeia preocupada com possibilidade de referendo em Portugal” (08/01) ou “Merkel, Sarkozy e Brown forçam José Sócrates a ratificar na AR tratado europeu” (09/01). Boas notícias sem dúvida (desde que autênticas, o que não está aqui causa), mas com algo em comum: nenhuma delas menciona, sequer por aproximação, a fonte ou fontes que as terão dado ao jornal, sabendo-se ser essa uma regra de ouro do jornalismo.

Duas das notícias suscitaram reclamações de leitores, as quais acabaram por servir de pretexto ao provedor para reflectir sobre a lacuna. Acerca do anúncio das preocupações europeias quanto a eventual referendo em Portugal para o Tratado de Lisboa, Sebastião Lima Rego critica a “manchete sensacionalista” e sublinha que “as peças enfatizam abertamente a alegada bondade da ratificação parlamentar, chegando mesmo a dizer que o Tratado foi negociado com a 'preocupação' (sic) de dispensar o recurso a referendos – compromisso que o primeiro-ministro negou expressamente no Parlamento.” Constata o leitor: “Não se dão quaisquer fundamentos factuais nem se citam fontes para o 'noticiado'. Tudo é adiantado como se fosse óbvio e indiscutível. É assim porque sim.” O subscritor reclama ainda: “Não é aduzido ou recordado um único argumento favorável ao referendo, uma só personalidade que defenda o referendo.”

Ao provedor – que solicitou a 15 de Janeiro um esclarecimento à jornalista Teresa de Sousa, autora da notícia, sem porém obter resposta – não pareceu haver fundamento para a queixa sobre a ausência de opiniões favoráveis ao referendo, dado não ser objecto do texto comparar prós e contras quanto ao modelo de ratificação do Tratado de Lisboa (discordando assim da ligação que o leitor faz do conteúdo da notícia à defesa da ratificação parlamentar assumida em editorial pelo director do PÚBLICO). Mas entende mais preocupantes as considerações sobre a ausência de fundamentos factuais para a manchete e de fontes às quais esta seja imputada. A notícia criava um sobressalto, já que todas as informações das semanas anteriores indiciavam a opção de José Sócrates pela via parlamentar para a ratificação do tratado – decisão aliás anunciada pelo primeiro-ministro, por curiosa coincidência, no dia seguinte ao da publicação da manchete. Sem atribuição a fontes, a notícia pode ser assim considerada sensacionalista, prática recusada tanto pelo estatuto editorial do PÚBLICO como pelo seu Livro de Estilo. Na manchete seguinte, o jornal fechava o ciclo, justificando a escolha de Sócrates, a revelar nessa tarde, por pressão exercida de véspera pelos líderes dos grandes países europeus – mais uma vez, sem imputação a quaisquer fontes (só era citado o “gabinete” do primeiro-ministro – prática aliás desaconselhada pelo Livro de Estilo –, que “não quis nem confirmar nem desmentir esta informação”).

Na ausência da explicação da jornalista, o provedor procurou ouvir um dos membros da direcção acerca da política do jornal sobre a menção às fontes de informação, a pretexto da queixa de outro leitor relativamente à notícia da compra de acções do BCP com crédito da Caixa Geral de Depósitos. João Ferreira indigna-se por o PÚBLICO, sem tentar confirmação, dizer sob a manchete que Armando Vara, então na CGD e em trânsito para o BCP, era o administrador responsável pelo pelouro do crédito na instituição bancária do Estado, o que foi desmentido por carta de dois outros administradores publicada no dia seguinte nas páginas interiores do jornal. Argumenta o leitor: “Para um jornal que se quer de referência (...), não se pode publicar uma notícia com uma tão grande falha. (...) O que me chocou foi o facto de não se ter feito, a meu ver, o básico para um jornalista: falar com o visado para lhe dar oportunidade de se defender, tarefa que é prévia à publicação. (...) Se nem o PÚBLICO cumpre o mais básico que é de exigir ao jornalismo, quem o fará?”

Dado que um dos autores da notícia era Paulo Ferreira, subdirector do PÚBLICO, o provedor, ao solicitar-lhe esclarecimentos relativos à queixa do leitor, perguntou-lhe também da razão de “não se ter citado qualquer fonte (mesmo não identificada) como origem da informação publicada”. Quanto à primeira questão, o subdirector admitiu o erro, explicando: “A informação obtida pelo PÚBLICO indicava que Armando Vara tinha participado na decisão sobre aqueles créditos por ter esse pelouro na administração. Esta informação, que não era central na notícia, estava incorrecta, como o PÚBLICO indicou na edição seguinte. A participação de Armando Vara no processo ocorreu através do Conselho Alargado de Crédito, que integrava.”

No que respeita à ausência de atribuição a fontes, justifica Paulo Ferreira: “As várias fontes contactadas pelo PÚBLICO (...) pediram, todas elas, o anonimato. (...) Não podendo identificar a origem da informação, também não se optou pela proliferação de fórmulas genéricas. Seguiram-se as regras do Livro de Estilo que estabelecem que, com informações obtidas neste contexto, ‘o jornalista deve ponderar se está em condições de assumi-las e publicá-las, sem recurso a fórmulas vagas, do género fonte próxima de’”.

O subdirector tem razão neste ponto: o Livro de Estilo do PÚBLICO possui de facto uma norma no sentido que indica, com a justificação de que “um jornal bem informado não precisa de justificar permanentemente as suas notícias – assume-as e responsabiliza-se por elas.”

Esta é talvez uma inovação a nível mundial em teoria e prática jornalísticas. Mas será uma inovação saudável? Como já atrás se disse, os manuais e cursos de jornalismo são unânimes em declarar obrigatória a imputação a fontes (mais precisas ou mais difusas, consoante o princípio da confidencialidade) de, pelo menos, factos ainda não previamente conhecidos ou amplamente divulgados, de matérias sensíveis ou de tudo o que seja controverso ou indiciador de polémica e/ou contestação. Conhecendo a origem das notícias, o público está em melhores condições para avaliar o seu contexto e julgar da sua solidez e fundamentação. Pelo contrário, a prática aconselhada pelo Livro de Estilo do PÚBLICO desobriga o jornalista de reproduzir com rigor as informações recolhidas junto das fontes, abrindo o caminho à especulação e até à fantasia. Da história deste jornal faz parte o famigerado título de 1ª página “Cavaco Silva aposta em maioria absoluta do PS”, publicado há três anos, em plena campanha para as últimas legislativas, e sustentado numa notícia que não mencionava uma única fonte, tendo levado 48 horas depois à impressão, na mesma 1ª página, de um pedido de desculpas aos leitores por parte da direcção do PÚBLICO.

E haverá fórmulas mais vagas do que “o PÚBLICO sabe que...”, “segundo o PÚBLICO apurou...” ou “segundo informações apuradas pelo PÚBLICO...”, as quais povoam sistematicamente as páginas deste jornal (inclusive nos artigos mencionados de início)? Certas notícias parecem surgir por obra e graça do Espírito Santo ou por telepatia. Mas o jornalista é um agente mediático, não mediúnico. O que o devia obrigar, sempre que não foi testemunha directa dos factos, a explicar ao público como chegou até eles.

Recomendação do provedor. Como jornal de referência, o PÚBLICO deverá ponderar, em próxima revisão do Livro de Estilo, a adopção das regras universalmente aceites quanto à invocação das fontes para fundamento das notícias.

Publicada em 27 de Janeiro de 2008

Documentação complementar

Queixa do leitor Sebastião Lima Rego:

Acerca da forma como o PÚBLICO tratou hoje, 8 de Janeiro, a questão da forma de ratificação do chamado Tratado de Lisboa, logo na primeira página, uma manchete sensçionalista: ' União Europeia preocupada com possibilidade de referendo em Portugal'. Dentro, na página 4, os textos dizem repetidamente que a hipótese de ser decidido um referendo em Portugal como condição ratificante do tratado constitucional da UE é vista com 'preocupação' pela presidência da União e pelos meios próximos do presidente da Comissão. As peças enfatizam abertamente a alegada bondade da ratificação parlamentar, chegando mesmo a dizer que o Tratado foi negociado com a 'preocupação' (sic) de dispensar o recurso a referendos -- compromisso que o primeiro-ministro negou expressamente no Parlamento -- e indo ao ponto de afirmar que existe um 'consenso' entre Presidente da República, PS e PSD para evitar o referendo. Não se dão quaisquer fundamentos factuais nem se citam fontes para o 'noticiado'. Tudo é adiantado como se fosse óbvio e indiscutivel. É assim porque sim. Não é aduzido ou recordado um único argumento favorável ao referendo, uma só personalidade que defenda o referendo. Pelo contrário, ao referirem-se razões objectivamente favoráveis ao referendo (admitindo desgarradamente que muita gente o reclama, sem explicar que gente é essa e qual o seu pensamento), desvaloriza-se de imediato esse posicionamento, tido como pretendendo desviar provavelmente as atenções de 'temas mais incómodos'.

Em suma, as duas notícias defendem de forma grosseiramente parcial a solução da ratificação parlamentar em detrimento do referendo. Sabe-se que esta é a posição do director do PÚBLICO. Se restassem dúvidas, bastaria ler o editorial de José Manuel Fernandes do mesmo dia 8. Vendo bem, tem esse direito, um editorial é a expressão de uma opinião livre e assinada. Mas, quando se faz uma notícia presumivelmente estribada em factos, há que respeitar valores de objectividade, equilíbrio e contraditório, que manifestamente estas peças não seguiram. Elas corporizam propaganda política clara sob a capa da notícia. São pois gato por lebre e podem, independentemente das intenções individuais dos protagonistas, mistificar os leitores e a opinião pública.

É pois sobre esta situação, tanto mais grave quanto o PÚBLICO é considerado um jornal de referência com influência não negligenciável nos próprios agentes políticos, que eu gostaria de ver a análise do provedor dos leitores.

Sebastião Lima Rego

Queixa do leitor João Ferreira:

Gostaria que comentasse o caso Armando Vara (AV). Num dia [4 Jan.] o jornal refere que AV tinha, como administrador da CGD, o pelouro do crédito para no outro dia, por intermédio de uma carta de dois administradores da CGD, a negar por completo essa informação, o jornal acaba por desmentir aquele facto.

É óbvio que o desmentido não teve a repercussão da notícia do dia anterior. Para um jornal que se quer de referência (...), não se pode publicar uma notícia com uma tão grande falha. A linha editorial do jornal é claramente de oposição ao actual governo. Mas não é isso que está em causa (se bem que possa ser um tema a analisar mais aprofundadamente no futuro). O que me chocou foi o facto de não se ter feito, a meu ver, o básico para um jornalista: falar com o visado para lhe dar oportunidade de se defender, tarefa que é prévia à publicação. Isso já não é um cuidado a ter antes de se publicar uma notícia? Além disso, parece-me que era extremamente fácil averiguar sobre o facto inverídico que publicaram (num banco público a informação é pública; facilmente se contactaria alguém do sector que informasse de tal situação). A notícia publicada (empréstimos da CGD a accionistas do BCP para reforçarem as suas posições) tinha interesse. Foi um bom furo. Todavia, fica sempre a pergunta: porquê a referência, tal como foi feita, a AV? Para quem lê com atenção o jornal, a resposta é simples, e já a revelei. No entanto, o que critico é a forma tosca, sem escrúpulos e ao arrepio da deontologia básica do jornalismo que a notícia demonstra. Se nem o PÚBLICO cumpre o mais básico que é de exigir ao jornalismo, quem o fará?

João Ferreira

Questão do provedor a Paulo Ferreira, subdirector do PÚBLICO:

Recebi de um leitor a participação anexa. Como apareces como um dos autores da notícia, gostaria de te solicitar os seguintes esclarecimentos:

a) Razão para não ter sido contactado Armando Vara no sentido de se confirmar se de facto ele detinha o pelouro do crédito bancário.

b) Razão para não se ter citado qualquer fonte (mesmo não identificada) como origem da informação publicada.

Joaquim Vieira

Resposta de Paulo Ferreira:

a) O PÚBLICO fez, neste caso, aquilo que é a prática corrente em relação a empresas ou instituições que têm canais formais e permanentes de contacto com a comunicação social: contactou os responsáveis pela comunicação externa e assessoria de imprensa para obter a posição da Caixa Geral de Depósitos sobre todos os aspectos da notícia, nomeadamente sobre a intervenção do administrador Armando Vara na decisão sobre as operações de crédito referidas.

Este é o procedimento utilizado diariamente em relação a centenas de instituições, públicas ou privadas, seja para obter ou confirmar informações como para permitir o exercício do contraditório, um dever básico dos jornalistas. O PÚBLICO cumpriu esse dever deontológico. A Caixa optou por não comentar, como é seu direito e foi referido a fechar a notícia.

A informação obtida pelo PÚBLICO indicava que Armando Vara tinha participado na decisão sobre aqueles créditos por ter esse pelouro na administração. Esta informação, que não era central na notícia, estava incorrecta, como o PÚBLICO indicou na edição seguinte. A participação de Armando Vara no processo ocorreu através do Conselho Alargado de Crédito, que integrava.

b) As várias fontes contactadas pelo PÚBLICO no âmbito da recolha e cruzamento de informação para a elaboração da notícia em causa pediram, todas elas, o anonimato. Esta é, infelizmente, uma tendência crescente no exercício do jornalismo e na relação dos jornalistas com as fontes de informação, trazendo consigo riscos acrescidos de manipulação do jornalista e do meio. A tentativa de evitar a multiplicação das fontes anónimas gera, por vezes, uma “negociação” dura e prolongada do jornalista com as suas fontes sobre a forma como a informação pode ser atribuída. Muitos informadores colocam mesmo como condição prévia que o jornalista não recorra sequer a fórmulas do tipo “fonte da instituição” ou “fonte próxima de”, por receio de poderem ser, de alguma forma, identificadas no círculo restrito que tem acesso aos dados em causa.

Perante estas condições, o jornalista tem que avaliar, em relação a cada caso concreto, se o interesse público da informação é suficiente para que se justifique a sua publicação, depois de devidamente cruzada e confirmada, sem fonte identificada. Foi o que aconteceu neste caso. O PÚBLICO considerou a notícia importante no contexto da escolha da nova administração do BCP para, depois de cruzar informação junto de várias fontes não relacionadas entre si, decidir publicá-la, assumindo-a.
Não podendo identificar a origem da informação, também não se optou pela proliferação de fórmulas genéricas.

Seguiram-se as regras do Livro de Estilo que estabelecem que, com informações obtidas neste contexto, “o jornalista deve ponderar se está em condições de assumi-las e publicá-las, sem recurso a fórmulas vagas, do género ‘fonte próxima de’”.

Paulo Ferreira

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