quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

De que ri este homem?



Em 3 de Dezembro último, o PÚBLICO foi o jogador que chega ao casino para apostar toda a sua fortuna no vermelho e sai o preto. A sua manchete desse dia, sobre o referendo constitucional venezuelano, proclamava a quatro quintos da largura da página: «Venezuela diz ‘sim’ à proposta de Chávez, oposição apela à vigilância». Mas os eleitores haviam na véspera chumbado a iniciativa do presidente daquele país para reforçar os seus poderes e eternizar-se no lugar. A notícia baseava-se em sondagens à boca das urnas, dado que à hora do fecho da edição ainda não era conhecido o resultado do escrutínio. O texto relatava que, segundo essas sondagens, o «não» teria recolhido apenas 46 a 47 por cento dos votos, quando de facto atingira 50,7 por cento.

Um falhanço tão clamoroso como este (que – temos de admiti-lo – fere com gravidade o prestígio do jornal) traz inevitavelmente à memória um episódio relacionado com as eleições presidenciais norte-americanas de 1948, disputadas entre o presidente em exercício, o democrata Harry Truman (na foto), e o aspirante republicano ao cargo, Thomas Dewey. Durante a campanha eleitoral Dewey liderou sempre as sondagens, e a imprensa foi unânime em dá-lo antecipadamente como vencedor. No dia da votação, as primeiras projecções continuavam a dar-lhe a vitória e os resultados dos estados da costa leste (onde as urnas fecham mais cedo devido à diferença horária) pareciam confirmar a evidência. A tal ponto que o Chicago Daily Tribune (não uma folha de couve mas, então como hoje, um dos mais importantes diários de referência na América) se atreveu com a manchete «Dewey derrota Truman». Acabou por ser o contrário: na imagem, é esse título que no dia seguinte, já com os votos contados, um triunfante Truman mostra aos seus apoiantes. O presidente norte-americano ri dos jornalistas, analistas e comentadores que acreditam em sondagens como nas tábuas da lei. Truman ri também do PÚBLICO de 3 de Dezembro.

O título «Dewey defeats Truman» transformou-se num marco clássico da história dos media, referido em todas as escolas de jornalismo, e supunha-se que mais nenhum periódico se deixaria cair em tamanha armadilha. Mas, parafraseando um spot televisivo, uma das primeiras ilusões do mundo moderno é julgar que os erros do passado não voltam a repetir-se. O jornalismo português tem sido afectado por algumas ocorrências do género, desde projecções eleitorais à boca das urnas que não se confirmarão ao longo da noite televisiva até uma célebre consulta aos delegados de um congresso partidário dando manchete a anunciar como líder aquele que viria a ser derrotado. De volta aos EUA, ainda há escassos dias, com base nas sondagens, os media transmitiam a sua plena convicção na vitória de Barack Obama nas primárias democratas no New Hampshire, quando o sucesso coube a Hillary Clinton. E foram os americanos quem inventou as sondagens...

Os que assim procedem ignoram o princípio basilar da democracia: deixar o povo expressar-se. Sem pôr em causa a ciência estatística ou a isenção dos inquiridores, é forçoso reconhecer que as sondagens, com todas as indicações úteis que possam fornecer quanto às tendências e movimentos de opinião nos universos estudados, nos traçam um retrato virtual da sociedade, uma second life que nem sempre tem correspondência com a riqueza e a imprevisibilidade da vida real. Estão detectados, de resto, diversos factores que tornam as sondagens falíveis, como a volubilidade da opinião pública, a ausência de debate ou esclarecimento antes de inquirida a amostra, a simplificação excessiva das formas de pensamento dos cidadãos ou a falta de sinceridade dos próprios entrevistados. A este respeito, aliás, seria natural que na Venezuela, onde as ameaças à liberdade de expressão têm sido permanentes e pistoleiros ao serviço de Chávez disparam sobre manifestantes da oposição, parte dos eleitores recusasse revelar que votara «não».

O PÚBLICO reconheceu o erro na edição seguinte (em nota da Direcção nas páginas interiores) e o seu director retomou o assunto no editorial de 5 de Dezembro. Mas será que o jornal extraíu as ilações devidas, de molde a prevenir situações equivalentes? O provedor ficou céptico quanto a isso ao ler a manchete da edição de 5 de Janeiro último: «Situação financeira das famílias ao nível mais baixo dos últimos 4 anos». Acontece que também esta notícia se baseou numa sondagem: o mais recente inquérito de conjuntura do Instituto Nacional de Estatística (INE), que aliás avalia não a situação financeira dos portugueses mas sim o seu estado de espírito na matéria. Ou seja, mais uma vez se confundiram sondagens com realidade.

Perante as duas ocorrências, o Provedor solicitou a José Manuel Fernandes esclarecimentos sobre «qual é, se é que existe, o critério de valoração e de credibilidade atribuído pela direcção do PÚBLICO às sondagens e quais são as directivas que, em conformidade, são transmitidas com vista ao seu tratamento noticioso.» O director respondeu por partes, estabelecendo diferenças entre ambas as situações.

Para o caso do referendo na Venezuela, J.M.F. sintetiza de forma idêntica ao anterior mea culpa do jornal: foi «uma precipitação, sobretudo do título da primeira página quando comparado com o título e o conteúdo da notícia no interior do jornal» (reconheça-se o rigor do tratamento dado ao assunto nas páginas interiores, em contraste com a manchete).

Quanto ao inquérito do INE, o director começa por distinguir a natureza da sondagem, muito diferente da outra e supostamente mais credível: trata-se da consulta regular a uma amostra mais ou menos constante, método pelo qual o INE constrói os seus vários indicadores – o mesmo que permite avaliar coisas tão diversas como a evolução das tendências de voto e popularidade dos políticos (o tipo de sondagem preferida dos media) e as audiências televisivas. (Não sendo este o objecto da questão apresentada, o tema não será aqui desenvolvido, mas o leitor poderá ler na íntegra a resposta de J.M.F. no blogue do Provedor, onde virá a ser colocada).

Por último, quanto à manchete correspondente, o director ouviu o jornalista autor da notícia, Sérgio Aníbal, que admitiu: «A questão, neste caso, não é tanto a de ‘confundir sondagens com realidade’, mas sim a da incorrecta simplificação dos títulos, que acabam por não bater certo com o conteúdo do texto». E J.M.F. acrescenta: «Se não podemos estar seguros a 100 por cento de que a ‘situação financeira das famílias [está] ao nível mais baixo dos últimos 4 anos’, sabemos que as famílias sentem, na média da amostra, que a sua situação financeira é a pior dos últimos quatro anos. A pergunta pedia uma auto-avaliação e o INE distribuiu o indicador correspondente. Isso percebia-se no texto, estava simplificado no título.» O director reconhece a dificuldade na obtenção de um título exacto e sintético: «Estive de volta da página ensaiando várias soluções e não consegui um título que reflectisse todas estas nuances, sobretudo a diferença entre ‘situação financeira’ objectiva das famílias e a percepção por estas de qual a sua ‘situação financeira’. Esclareço que a regra actualmente em vigor no jornal não permite aumentar ou diminuir o corpo de letra dos títulos, o que com frequência torna um exercício muito difícil a sua construção.» (O Provedor julga que tudo estaria bem se a expressão «confiança dos consumidores», usada em subtítulo, tivesse sido «puxada» para título).

Pelo estatuto editorial, o PÚBLICO é «orientado por critérios de rigor», que não terão existido nos dois casos. E nenhumas regras gráficas devem ser tão draconianas ao ponto de obrigar um jornal a contrariar o seu estatuto editorial. Fica por esclarecer o entendimento que a redacção faz do valor jornalístico a atribuir às sondagens. Aliás, já feito o pedido de esclarecimento a J.M.F., o PÚBLICO titulava um dia após a votação no New Hampshire (edição de 9 de Janeiro, pág. 20): «Hillary Clinton não desiste, mesmo depois da derrota anunciada para o New Hampshire». Os fusos horários têm as costas largas, mas era bom que os jornalistas estivessem abertos a deixar-se surpreender pela realidade.

Recomendação do provedor. Um jornalismo de rigor não deve confundir sondagens, quaisquer que sejam as suas formas, com factos reais, a não ser os da sua própria existência como sondagens. Deve ser relativizado o valor noticioso das sondagens e dado na mesma proporção destaque às suas conclusões.

Publicada em 13 de Janeiro de 2008

DOCUMENTAÇÃO COMPLEMENTAR

Pedido de esclarecimento do Provedor ao Director do PÚBLICO:

A propósito da manchete de 3 de Dezembro de 2007 sobre o referendo venezuelano, tenciono suscitar na crónica do provedor a questão do tratamento jornalístico dado às sondagens. Apesar de a Direcção já ter fornecido aos leitores explicações no dia a seguir, creio que existem ilações mais alargadas a retirar, não só para a prática jornalística do Público como para os media portugueses em geral. Quer-me parecer, com efeito, que existe uma tendência para confundir sondagens com realidade. O caso de 4 de Dezembro não é único. Um exemplo foi dado de novo na edição do Público do passado sábado, 5 de Janeiro, com a manchete «Situação financeira das famílias ao nível mais baixo dos últimos 4 anos». Com efeito, analisada a notícia, verifica-se que não são adiantados elementos numéricos que sustentem a afirmação, tratando-se antes da menção a uma sondagem, especificamente ao mais recente inquérito de conjuntura do INE. Ora, o facto de os inquiridos revelarem um nível de pessimismo que é o mais elevado desde 2003 não implica necessariamente que a situação das famílias portuguesas esteja ao nível mais negativo no mesmo período. A questão que coloco é pois a seguinte: atendendo aos casos mencionados, qual é, se é que existe, o critério de valoração e de credibilidade atribuído pela direcção do Público às sondagens e quais são as directivas que, em conformidade, são transmitidas com vista ao seu tratamento noticioso.

Joaquim Vieira

Resposta do Director do PÚBLICO:

Vou dividir a resposta em três partes: a) o caso de 4 de Dezembro; b) o conteúdo da notícia de 5 de Janeiro; e, c) o título de 5 de Janeiro.

a) Julgo que está tudo dito no editorial de dia 6 de Dezembro, mais do que nas explicações do dia seguinte. Nesse caso não esteve em causa qualquer “critério de valoração e de credibilidade” das sondagens, antes uma precipitação, sobretudo do título da primeira página quando comparado com o título e o conteúdo da notícia no interior do jornal.

b) A questão de 5 de Janeiro é muito diferente, pois não estamos perante uma vulgar sondagem, como as relativas a intenções de voto, mas perante um indicador de conjuntura a que o INE chega através de um método de amostragem sistemática e com critérios coerentes ao longo dos anos. Contudo, para esclarecer melhor exactamente do que estamos a falar, pedi ao jornalista Sérgio Aníbal, autor da peça, que explicasse melhor os métodos do INE. Passo a transcrever o seu esclarecimento:

"Em relação à questão sondagens/indicadores do INE, o que se pode dizer é que a generalidade dos indicadores do INE, como a taxa de inflação, taxa de desemprego, PIB ou indicadores de confiança são calculados usando métodos de amostragem. Nos indicadores de confiança que são referidos no artigo em causa, a dimensão da amostra é de 2098 pessoas. Nesse aspecto, é tão correcto dizer, por exemplo, que “a taxa de desemprego é de 8,2 por cento”, como dizer que “a confiança dos portugueses caiu para um mínimo”. É verdade que são informações obtidas através de amostragem, mas são as mais completas que existem, são dados oficiais e não existe qualquer possibilidade de verificação com o total da população. Isto torna-as substancialmente diferentes de qualquer sondagem eleitoral."

Ou seja: com excepção do Censo (que se realiza de dez em dez anos, julgo), a maior parte dos indicadores do INE resultam de amostragens que foram sendo cuidadosamente filtradas. Por exemplo: a determinação da taxa de inflação faz-se consultando lojas escolhidas, tidas por representativas, onde mensalmente os técnicos do INE anotam a evolução dos preços de um cabaz de produtos previamente seleccionado. A amostra vai variando lentamente, não há uma amostra diferente todos os meses. Contudo, o número resultante é considerado oficial e certificado pelo Eurostat.

Já a taxa de desemprego ou os indicadores de confiança seguem um método de inquérito de amostragem mais próximo do de algum tipo de sondagens. Utilizam amostras grandes, para diminuir a margem de erro (mas menores, por exemplo, do que as habituais numa ‘sondagem à boca das urnas’). E também são certificados, constituindo-se séries longas.

Todos estes indicadores, obtidos desta forma e requerendo o recurso a inquéritos e a amostras representativas, permitem fazer comparações com o passado (devido à constância do método) e comparações internacionais (seguem, por exemplo, normas do Eurostat).

Portanto, do ponto de vista do rigor, o jornal deve utilizar esses números com o mesmo grau de confiança do INE, podendo contudo questionar os métodos (é muito discutível, por exemplo, o critério seguido para saber se alguém está ou não desempregado) ou mudanças de critérios. De resto, trata-os como números oficiais, não como resultados de sondagens avulsas. (Poderei explicar os critérios para tratamento das sondagens que encomendamos, mas não julgo que venha a propósito). Finalmente, o facto de serem números certificados pelo INE leva-nos a dar-lhes mais crédito do que, por exemplo, aos dados das audiências, que também resultam de amostragens, ou sondagens.

c) Finalmente, a questão do título. O Sérgio Aníbal também se quis pronunciar sobre isso. Volto a citá-lo:

"Agora, quando o provedor diz que “o facto de os inquiridos revelarem um nível de pessimismo que é o mais elevado desde 2003 não implica necessariamente que a situação das famílias portuguesas esteja ao nível mais negativo no mesmo período”, ele realmente tem razão. Nesse aspecto, os títulos da primeira página e do texto simplificaram muito a questão. Acho que a questão, neste caso, não é tanto a de “confundir sondagens com realidade”, mas sim a da incorrecta simplificação dos títulos, que acabam por não bater certo com o conteúdo do texto."

Ele refere-se ao seu próprio texto e ao título que fez, não apenas ao da primeira página. Estive a discutir com ele como se poderia fazer melhor, no limite das palavras (ou letras) que cabiam naquele espaço. Não era muito fácil, pois a informação relativa a 2003 não traduz apenas a confiança no futuro, mas também uma avaliação da situação presente. Objectivamente: se não podemos estar seguros a 100 por cento de que a “situação financeira das famílias [está] ao nível mais baixo dos últimos 4 anos”, sabemos que as famílias sentem, na média da amostra, que a sua situação financeira é a pior dos últimos 4 anos. A pergunta pedia uma auto-avaliação, e o INE distribuiu o indicador correspondente. Isso percebia-se no texto, estava simplificado no título. (Tudo isto, claro, partindo do princípio que estamos a falar de um indicador cujo método de fixação é realizado por amostragem mas que tem tanto valor como o da taxa de desemprego).

Estive de volta da página ensaiando várias soluções e não consegui um título que reflectisse todas estas nuances, sobretudo a diferença entre “situação financeira” objectiva das famílias e a percepção por estas de qual a sua “situação financeira”. Esclareço que a regra actualmente em vigor no jornal não permite aumentar ou diminuir o corpo de letra dos títulos, o que com frequência torna um exercício muito difícil a sua construção.

Em síntese: no caso da Venezuela houve precipitação, no da economia dificuldade de traduzir uma nuance num título. No primeiro caso a precipitação, não resultou da sobrevalorização consciente das sondagens, foi um erro cometido por se ter querido dizer o que os outros não diriam ainda no dia seguinte (o jornal esperou até tarde para tentar ter mais resultados). No segundo caso, o indicador do INE, mesmo sendo obtido por amostragem, foi tratado, e a meu ver bem, como um dado oficial passível de comparações, e não como o dado de uma sondagem eleitoral vulgar, pois não resultou de um trabalho feito com os mesmos critérios desse tipo de sondagens. Nestas, por exemplo, colocamos sempre a ficha técnica e indicamos margens de erro. Nunca fazemos o mesmo com este tipo de indicadores do INE, apesar de formalmente todos eles comportarem alguma margem de erro.

José Manuel Fernandes

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